MARIA FUMAÇA

    O que está descrito a seguir não é para afrontar ou causar inveja em ninguém. No entanto, conduz a uma temível constatação: quem viveu, viveu. Quem não viveu, não viverá! Na minha infância, nas horas de folga, podia sair até a varanda e optar por capturar passarinhos nos matagais que ladeavam a “Rua do Urubu”; roubar frutas no pomar do “seu Tinin”; jogar futebol num terreno baldio que havia de frente de casa ou no “campo de aviação (*)”; pescar bagres no Rio Bengalas, ou, simplesmente, se estivesse muito frio ou chovendo, disputar comigo mesmo renhidos clássicos de futebol de botão no próprio chão da varanda. Nesse caso ganhava sempre o time que contasse com “Leda Azul”, lendário e virtuoso botão de galalite que era o sonho de consumo de todos os meninos das redondezas. No entanto, todas essas opções eram imediatamente abandonas se ouvisse o apito da “Maria Fumaça” dirigindo-se à estação de cargas. Atrás rastro deixado pela fumaça expirada pela majestosa chaminé, não perdia as operações de embarque e desembarque de mercadorias.Não chegava a 500 metros, a distância entre a minha casa e a estação. Podia escolher os caminhos. Um deles não apresentava riscos. Exigia apenas a ultrapassagem da cerca de arame liso que delimitava a estação. A única dificuldade era abaixar a cabeça até a altura da cintura. No entanto, a trajetória que mais agradava era a que permitia a prática de acrobacias na “Ponte de Ferro”.  O acesso – proibido aos pedestres – era exclusivo do trem, porque os intervalos entre um dormente e outro eram vazios. Não havia chão. Se alguém errasse a passada e caísse, a próxima parada seria as águas rasas e geladas do Rio Bengalas. Entretanto, nunca soube que alguém tivesse caído lá embaixo. A “Ponte de Ferro” era uma obra de arte futurista, inspirada em figuras geométricas, estruturada em grossas vigas de aço negro, encimada por enormes meios círculos.         Geralmente no casamento de alguma prima, o nosso pai anunciava que iríamos viajar de “Maria Fumaça”, cujo embarque dava-se longe de casa, na estação de passageiros. Os preparativos e a própria viagem era uma operação de guerra que a minha mãe deflagrava com no mínimo um mês de antecedência. A viagem, geralmente com destino em Niterói, era feita com os joelhos apoiados nos duros bancos de madeira e o rosto um “tantinho” para fora da janela aberta, travessura que deixava a nossa cara toda suja de fuligem. Exceto o tempo do almoço, cujo cardápio imutável era composto de arroz, frango com farofa e refresco de groselha, a distração da viagem era divida pelas breves paradas para reabastecimento d’água, realizado através de canaletas de madeira que saiam de alguma nascente até o trem e do incansável espetáculo paisagístico proporcionado pelo verde escuro das matas serranas. O ápice eram as curvas. Naqueles momentos, das janelas dos vagões de passageiros postados no final do comboio, nos era permitido assistir lá na frente a chaminé da locomotiva soltar a fumaça que rapidamente misturava-se as nuvens de branco impecável, contrastando perfeitamente com o límpido azul do céu das frias manhãs. É indescritível a visão da velha “Maria Fumaça” escalando a serra sem nenhuma reclamação. Muito pelo contrário. Não cansava de apitar de satisfação!        Vinte anos de “milagre econômico”, de 64 a 84, foram bastante para liquidar com as vias férreas brasileiras. As “Marias Fumaças” foram aposentadas. Ainda houve um prefeito que conseguiu que a locomotiva virasse atração turística e ficasse exposta publicamente na Praça Getúlio Vargas. Um outro devolveu a máquina à Rede Ferroviária. A estação de passageiros virou Prefeitura e a de cargas quartel da PM. Até a “Ponte de Ferro” foi – criminosamente – desmontada. O terreno baldio foi ocupado por uma bela casa. O pomar foi transformado em prédios de apartamentos. O Rio Bengalas mudou de cor. Está ficando vermelho de tinta, poluído e sem vida vegetal ou animal. A “Rua do Urubu”, se transformou numa importante avenida. Ninguém me dá notícias do “Leda Azul”. E os passarinhos – que não são bobos – migraram para privilegiadas residências rurais de Amparo, distrito rural de Friburgo (quem conhece as casas, sabem a que me refiro).         Os anos de vontade de andar novamente de trem, foram saciados numa excursão realizada até o SESC de São João da Barra (RJ),  que possui naquela cidade uma imensa sede recreativa, com toda estrutura necessária para hospedagem e lazer e ainda oferece como grande atração o passeio na “Maria Fumaça”. E numa agradável tarde de sábado, com minha esposa a tiracolo,  recordei de tudo a que tinha direito: viajei de pé como quando criança. Olhei a paisagem pela janela. Esperei pela curva, para ver a fumaça lá na frente. Fui parte ativa do coro das crianças, acompanhando o apito da máquina. Fingindo passear, vasculhei todos os cantos da estação de parada obrigatória, onde também sentei confortável nos velhos, porém, cuidados bancos de madeira secular. Passei de um vagão para o outro pelo estribo. Lanchei o prato típico das antigas estações: caldo de cana com pastel. Fotografei tudo e ainda fiz um gol de placa: no retorno, tirei foto para a posteridade, abraçado ao condutor da locomotiva que, oferecendo um sorriso enigmático, solene e elegante recebe os passageiros na volta, mantendo-se impecável dentro do terno azul-marinho escuro, de frisos verde e detalhes em dourado, camisa branca, gravata e um portentoso chapéu de aba branca, emoldurado também pelos frisos dourados e em verde.        Entretanto, a alegria pelo passeio ansiado há tantos anos durou só até a noite. Numa ausência, o apartamento em que estávamos hospedados no SESC de São João da Barra foi roubado. Não sumiu a minha roupa, o meu dinheiro, os cheques ou cartões de crédito. Foram surrupiadas as roupas da minha esposa e uma bolsa de papel onde estavam a máquina fotográfica e os filmes tirados no passeio.Mas sobrou um registro da aventura. Guardada em lugar especial e com todo cuidado na minha carteira estava a passagem que me deu a permissão de “viajar” em todos os sentidos numa autêntica “Maria Fumaça”.  Vai virar quadro na parede. Até porque o bilhete possui selo autenticidade: está devidamente picotado por uma bilheteira de mãos cuidadas, cabelo louro preso num elegante coque, uniformizada à caráter dos sapatos até o chapéu que ao sorrir, conduz por viagens em trilhos nunca antes desbravados.                   (*) O “campo de aviação” era formado por dois grandes gramados, separados por uma fileira de “pés-de-galinha” e um ou outro pé de mamona, ladeados pela estação dos trens de cargas e pelo Rio Bengalas. Era conhecido como “campo de aviação” porque ali se dizia ser possível a aterrissagem de pequenos aviões, fato que., enquanto morei em Friburgo deve ter acontecido no máximo duas vezes. Possuía até um “biruta” para informar a direção dos ventos e uma pequena plataforma de cimento que nunca soube pra que servia.        Sua noite de glória aconteceu quando uma noite, um pequeno teco-teco com o combustível no fim, começou a  sobrevoar  em círculos a cidade à procurava de pouso e só encontrou “chão” nos seus domínios. Na descida do avião, o piloto orientou-se pelas tochas e fogueiras que foram colocadas demarcando o espaço disponível. O interior do “campo de aviação” foi iluminado pelos faróis de dezenas de automóveis e caminhões.           Entretanto, na verdade, trava-se de uma grande área de terra que possuía dois campos de “pela da” improvisados e utilizados do amanhecer até ao anoitecer..  

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