NÃO CANTO OU TAMPOUCO ASSOBIO

    Outro dia, durante o percurso para o trabalho, duas "companheiras" no interior  da van em que me encontrava, cantarolaram, alegres, e afinadas uma bonita canção que eu desconhecia. O que mais me tocou não foi o fato de ver a descontração delas "em público", mas constatar que eu, um aficionado em música, não canto e sequer assobio – nem no banheiro.Da infância para a adolescência, fui um persistente tenor de chuveiro. Nas  tardes gélidas de Friburgo, levava "horas" tomando banho e "cometendo" tantas  músicas quantas me viessem à lembrança. Possuía um variado repertório que  ia de Teixeirinha a Elvis Presley e só parava com a cantoria ante a alguma ameaça de um peteleco da minha mãe para acabar com o banho.Uma das melhores recordações que tenho do tempo das salas de aulas do Colégio   Anchieta é que, na carteira da frente, sentavam dois excelentes "cantores"  que, a qualquer bobeada dos professores, abriam o caderno de música e entoavam,  afinados e em dupla, canções que combinavam perfeitamente com o meu gosto.Eu chegava a ficar inebriado. Depois, mesmo sendo patrulhado pela minha turma, que considerava crime de  lesa-pátria ouvir qualquer membro da Jovem Guarda, curti muito as músicas românticas cantadas pelo Roberto Carlos. Sabia uma porção delas. Sob todos os riscos e paralelo ao próximo lançamento de um novo vinil do cantor, saia procurando pelos quintais pedaços de canos de chumbo e garrafas vazias paravender e aplicar o dinheiro obtido no novo disco. Após a compra, desfilava orgulhoso com o "troféu" debaixo do braço para lá e para cá. Dava "status".Ultrapassada a fase Roberto me transformei num fanático "bossanovista", daqueles  que, mesmo de longe, cerrou fileiras ao lado de Elis Regina no boicote aos  roqueiros. Naquela época, cultivava, com exacerbado ciúme, um caderno, onde  havia algumas letras de consagrados compositores  bossa-nova que eu garantia  serem "inéditas"."A nível" internacional, "era um garoto que amava os Beatles" e música italiana.  Acho que nem precisava dizer que não perdia na TV um programa sequer da série  "O Fino da Bossa", que era apresentado pela Elis Regina e Jair Rodrigues. Do primeiro LP "Dois na Bossa" da dupla, eu sabia até o que um falou no ouvido  do outro. Quando surgiram os festivais, fui tomado por uma febre "chicobuarqueana",  que ainda apresenta fortes sintomas de idolatria e altas temperaturas, mas não provocam mais tremores. Numa fase modernista andei flertando com Cazuza, Frejat, Paula Toller e Marisa Monte. Contudo, de nenhum deles comprei mais do que um CD. Não tenho um diagnóstico fechado sobre as causas desse meu silêncio musical. Sei apenas que o princípio ativo dessa crise está na quase obrigatoriedade atual em ouvir – onde quer que esteja – duplas sertanejas, conjuntos de pagode e "cantores" funk, que me causam tanta irritação, que me levam a evitar ouvir,  sem distinção, qualquer tipo de música.

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