PAIXÃO

    O ambiente da sala era pesado. Estávamos sentados frente a frente: eu, minha esposa, a filha mais velha e o namorado. TUM! TUM! TUM! TUM! TUM! TUM! TUM! TUM! Minha cabeça parecia receber uma série de golpes ritmados de uma marreta enquanto ouvia a inesperada notícia da gravidez. Tomei a palavra e nunca falei tão duro na minha vida. Logo após o “comunicado”,eu e a Célia, andamos sem rumo. No caminho, procuramos descobrir em minutos os erros de anos. Achamos muitos, reconhecemos outros e negamos alguns. Seis meses depois me surpreendi pesquisando pelas farmácias o menor preço das fraldas descartáveis. Para evitar novas surpresas, comprei um uniforme completo do Vasco para bebês. Não admitiria um novo desvio do caminho natural das coisas. No dia do parto, quando cheguei para conhecê-la no Barra D’or, ela ainda não havia se “dignado” a dar o ar da graça no quarto. Ansioso, fui ao berçário e fiquei observando as crianças através da vidraça. Não tive dúvidas para reconhecê-la: era aquela do “narizinho de batata”. No momento em que a enfermeira a entregou nos braços da mãe, a nova integrante do clã chorou pela primeira vez na nossa frente, no que foi acompanhado em coro por toda a família.  Seis meses depois, em 28/12/2002, um dia depois de ter tomado a vacina tríplice: um grito desesperado ecoou pela casa vindo do quarto. O bebê ficara roxo de repente e se debatia. Louca corrida ao hospital. Diagnóstico: nada demais! Virose! Por precaução é levada à pediatra. Novas crises ocorrem. Nervosismo. Ambulância que não chega. Desencanto. A carência do plano não foi cumprida. Desespero. Mil telefonemas. Desesperança. Corre-corre. Sufoco. Emergências. Agonia. Recusas de cheques-caução. Revolta. Ambulância. Esperança. Hospital Municipal. Medo. Internada durante treze dias foi revirada do avesso e sofreu o que poucas crianças da idade suportariam. Foi “torturada” diariamente com agulhadas nos braços, pernas e a sonda do soro ficou “espetada” na sua cabeça por todo o tempo. Diagnóstico: epilepsia. Dois meses depois nova crise. Ambulâncias. Emergências. Mil furos e picadas de agulhas. Repetidas crises. A partir daí, romarias a todos os médicos possíveis. Todos os hospitais foram testados no Rio e em São Paulo. Todos os búzios foram jogados. Todos as igrejas, terreiros, casas de oração e templos visitados. Todas as correntes, simpatias, e promessas foram feitas e pagas.Foram três anos de choro e manhas, de sofrimento solidário, de baixa qualidade de vida, de irritação, de colo, de pernas bambas, de todos os exames neurológicos, de insatisfação com os resultados e com os médicos, de inadaptação à escola, de “mama” para lá e para cá, a sua única palavra. Período em que o telefone não podia tocar, o barulho do carro sobressaltava, um chamado mais alto colocava em alerta, uma pisada mais forte no solo desestruturava. No final de 2004 a “ficha caiu”: ela é uma criança especial e é preciso peregrinar nesse sentido. A caminhada até normalização leva anos, é árdua e a maratona é pesada: o dia começa com sessões de fono e fisioterapia e o colégio especializado ocupa-lhe à tarde. Periodicamente, têm que comparecer ao Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, referência em neurologia. Mas, o passo decisivo foi o retorno ao amigo, competente e atencioso Dr. Jorge Luiz Amorim Correa.  As crises ainda não estão controladas, porém, os sustos foram amortecidos. As palavras começam a aparecer e pequenas frases são ouvidas. Descobriu o velocípede e adora dançar músicas da Xuxa equilibrando sua sombrinha. Desenvolveu mais habilidades em 6 meses, do que nos seus primeiros três anos e meio de vida. Aluna atenta sabe e repete à sua maneira, o nome dos seus coleguinhas e desconfio – enciumado – que atrás da preferência pelo Enzo e pelo Vitinho tem coisa…  Porém, não discrimina as meninas e vive “escrevendo” o nome da Bárbara, da Gabi e da Monique. Enfim, começa a ser uma criança. As suas gargalhadas e estripulias  que o digam…As lembranças dessa fase me fizeram ver que ela realmente é especial. Não imaginava que estava preste a receber uma dádiva, quando tomei conhecimento de sua concepção. Sua simples presença e garra me dobraram, me convenceram, me hipnotizaram, me ensinaram A “Clarinha Guerreira” é de uma fidelidade canina ao avô: cumpre fielmente a profecia que fiz em nome dela ao publicar numa faixa pendurada no portão de casa: ” 2005 será o ano da virada “. Dia 16 de junho completou 4 aninhos. Teve bolo, refrigerante e a “jura” de que a minha liberação de “cantar para subir” só se dará daqui a 11 anos, ou seja, depois que ela fizer 15 anos.Nesse dia ela poderá escolher o vestido e o sapato, porém, exijo que o cabelo ruivo e crespo seja “penteado” ao estilo do futebolista colombiano Valderrama: preso na frente com uma tiara envolvendo o rosto e o restante deixado ao sabor do vento, como se fosse um cocar indígena. De rostos colados e ocupando a pista de dança com exclusividade, rodopiaremos ao som de Elis Regina cantando “Fascinação”, cena que irá me proporcionar um retorno ao dia 07/02/1992 para lembrar que já fiz o mesmo com a sua mãe. Mas, haverá uma diferença fundamental: um imenso letreiro luminoso se acenderá e anunciará a todos que você Ana Clara, foi, é, e será sempre a minha mais ardente, irremediável, definitiva e correspondida paixão.   

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