PRAZERES DA VIDA

    Em junho de 1993, em decorrência da elevação das taxas sanguíneas, fui acometido por uma pancreatite. Doença grave que me custou um mês de internação e mais dois de licença-saúde. De volta ao trabalho, continuei por um bom tempo numa dieta infernal, da qual, por pânico de uma possível recaída, não me permitia ao mínimo deslize.  Num meio-dia de um janeiro de 50 graus, andava pela Cinelândia quando lembrei que havia marcado um compromisso na Candelária para dali a uns cinco minutos com uma pessoa que, por pontual ao extremo, não admite esperar mais de um minuto por ninguém. Como tomar o metrô poderia ser contraproducente, me dispus a apertar o passo e continuar andando, quase correndo. Entretanto, logo constatei que não havia como chegar a tempo. Perdida a obrigação, relaxei, diminui a velocidade e passei a caminhar normalmente. Acometido por uma insônia, encontrava-me arrasado, ou seja, cansado e com sono. Todo suado e com uma fome e sede de antes de ontem, entrei numa lanchonete e pedi uma água mineral. Nem fria estava. A temperatura encontrava-se entre o morno e o quente.Exatamente neste momento, “adentra” ao recinto um desses sujeitos que, por mais atividades que exerçam e por mais quente que esteja o dia, conseguem conservar o terno (com colete) de linho branco impecável; cheirar a banho recentemente tomado; permanecer com as mãos incrivelmente limpas; deixar os sapatos brilhando e não suar uma gota. E pode ventar à vontade! O cabelo não desmancha! Enquanto eu me derretia em rios de suor que apareciam por todos os poros, comecei a prestar atenção nas ações do novo freguês, nessa altura já intimamente instalado junto ao balcão. Para começar, escolheu o prato que eu namorava os olhos esbugalhados: um ensopado de frango com batatas, coberto com muito molho de cebola, pimentão e tomate, que parecia ser de se comer de joelhos. Rezando!Elétrico, o garçom mecanicamente depositou uma cerveja em cima do balcão. Solenemente, o chegante verificou a temperatura da garrafa, fiscalizou a limpeza da tulipa e só aí ordenou a abertura. Mostrou ser conhecedor do assunto. O garçom não ficou atrás: com maestria e estilo retirou a tampinha, provocando aquele barulho típico e inigualável: TCHUFFFF!!!!! Em seguida, retornou o recipiente para cima do balcão. Imediatamente uma fina camada de gelo, como se fosse minúsculos flocos de neve, tomou conta da garrafa externamente. Paralelo ao fantástico som do GLOB, GLUB, GLOB, GLUB fiquei admirando o líquido ser depositado na tulipa. O alerta de pausa foi percebido quando a espuma branquíssima ultrapassou borda do copo.   Resolvi tomar mais um “golinho” da minha água mineral. Estava mais quente ainda.Passei a filosofar intimamente sobre a cerveja: o líquido amarelo, com rendado branco na borda externa é tão bonito repousado, que nem a tulipa consegue resistir. Sua de satisfação. Acho que merecia ficar intocada. Mas quem resiste?O cervejeiro molhou os dedos no suor da tulipa e foi sorvendo em grandes goles todo o conteúdo do copo. Depois, limpou vagarosamente com a língua, os vestígios de espuma dos lábios e deu uma cofiada no bigode.  Repousou o copo vazio, olhou para os lados, acendeu um cigarro, jogou a primeiro fumaça fora e depois deu uma longa tragada. Atendendo as minhas preces, soltou a fumaça em minha direção. Traguei com ele! Fumei com ele! Fui à forra daqueles longos seis meses de abstinência química! Sem esperar o garçom, voltou a encher a tulipa e repousou o copo com maestria e elegância no balcão. Mas, não bebeu. Revirou o frango com batatas e molho no pratinho com um palito em uma das mãos e um garfo na outra. Depois escolheu a batata mais macia e opulenta e serviu-se.  Nem mastigou. Não precisava. Estava desmanchando. Escolheu o pedaço de frango mais corado, retirou o osso, juntou com bastante molho e levou à boca. Mastigou por um longo tempo. Longo tempo… Bebeu mais um gole. Este mais rápido. Para acompanhar, eu diria. Mais uma nova e longa tragada no cigarro.Pensei em pedir ao garçom um pacote de biscoito água e sal para resistir. Desisti. Até porque, a essa altura, eu nem sabia o que me incomodava mais, se a fome, a sede, o sono, o cansaço ou insistente suor que escorria pelo meu corpo inteiro.Foi quando, finalmente, o cervejeiro notou a minha presença.  Tomou mais um longo gole da cerveja, deu mais outra longa tragada, comeu mais um pedaço do frango e depois, me olhando com simpatia, fez várias perguntas seguidas:- Podem existir prazeres mais simples e baratos do que esses? E você sabia que têm pessoas que nem isso podem curtir? Dá para acreditar que elas existam?- Se acredito que existem? Claro que sim! Eu até conheço uma delas…  

    Matéria anteriorBATENDO CONTINÊNCIA
    Matéria seguinteVOCÊ VIVE COM MEDO?