VIAGEM AO INTERIOR DOS “PÉS-SUJOS”

    Careta assumido (jamais abstêmio!), nunca fui freqüentador dos “‘pés-sujos” cariocas e tampouco recordo da última vez que me sentei num deles. Entretanto, pelas características especiais de localização e do designer interior; como também pelas peculiaridades da fauna de freqüentadores, há algum tempo passei a observar esse tipo de instituição 100% nacional. Para mapeá-los e entendê-los, primeiro, é preciso demarcar as fronteiras. Na Zona Sul do “S”, isto é, a “suburbana”, (vai da Glória a Botafogo e inclui Laranjeiras) os botecos possuem mesas e cadeiras de ferro, TV e balcões de padaria. Já na Zona Sul do “A”, ou seja, bairros do além túnel (o que inclui a Gávea), os botecos sobem o padrão e acrescentam ou substituem à sofisticação aos seus pares da ZS do “S”, mesas de plástico amarelo, “freezer” patrocinado por fábrica de cerveja e vitrines de fórmica. A Barra da Tijuca e o Recreio ficam de fora porque, por lá, nada é autêntico. Aliás, de acordo com o “expert” Zeca Pagodinho, se na Barra não existe nem esquina direito, é impossível que tenha botequim que preste.Quando se ultrapassa a fumaça da gordura que surge da minúscula e suspeita cozinha é que se vislumbra os verdadeiros “pés-sujos”, só encontrados no centro da cidade, nos subúrbios e na república independente de Copacabana. São tipicamente constituídos de antigas geladeiras de cerejeira; pequenas mesas de tampo de mármores, duras cadeira de madeira, balcão de azulejo verde e paredes tomadas por cartazes de bebidas, fotos de mulher nua e anúncios escritos em folhas de caderno. Na porta, um cartaz descreve o PF do dia. Tem sempre uma promoção. Em cima do balcão ficam a vitrine de vidro embaçado e as refresqueiras de batida de limão. Como tira-gosto, lingüiça frita boiando na gordura; farofa de antes de ontem, carne assada queimada, pastel murcho, ovo cosido de casca rosa, potes de pré-históricas conservas, duvidosos picles. A estrelada companhia é o irresistível torresmo, ainda exposto naqueles antigos pratos de esmalte descascado nas bordas. O lugar preferido do freqüentador de pé-sujo é a pia que fica escondida lá no final, na entrada do banheiro apertado. É ali que, escondido pela fileira de garrafas que fica em cima da mureta, consegue beber um “traçado perfeito” que é a mistura de catuaba com batida de mel da Trianon ou um Velho Barreiro, livre dos olhos indiscretos e das línguas ferinas.O “habitué” diário de boteco que se preza é solitário e de pouca conversa. É bom ouvinte e grande observador, principalmente das vizinhas bonitas do bar.  Não é chato e não tolera bêbados. Geralmente possui lugar cativo e pede uma única cerveja que dura o tempo suficiente para que dê várias escapadas até a pia. E mais, não “fecham” o bar. É tão fiel ao botequim que freqüenta, que se torna amigo e defensor do dono e desafeto do concorrente mais próximo. Ao passar em frente aos concorrentes, nem se digna a olhar-lhes o interior. Mas, a fidelidade só o acompanha no seu próprio quarteirão. Pode ser visto perdido em algum botequim mais distante. Os balconistas possuem marcas registradas: mau humor crônico; vestem maltratados jalecos azul-claros com o nome bordado no bolso e pano de prato engordurado pendurado no ombro. Prosseguia muito bem nas observações sobre botequins até o dia o dia em que li do catedrático Aldir Blanc quais são os atributos indispensáveis a um “pé-sujo” para ser autêntico: rodelas de limão para tentar melhorar o odor de urina do W.C.; chão coberto de serragem; engradados de cerveja empilhados obstruindo as inadiáveis idas ao WC; gato preguiçoso dormindo na porta e camundongo de estimação passeando em cima do balcão. Foi então que conclui que, sobre “pés-sujos”, ainda não aprendi nem o “bê-á-bá”.    

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