DESFOLHANDO A MARGARIDA

    O Arnaldo Jabour contou no GLOBO que, na Urca, onde morou, havia vários times de praia. Ele era fanático pelo Ipiranga, de uniforme verde e vermelho, que almejava ostentar um dia, de preferência se Silvinha, moreninha de olhos verdes, estivesse na amurada assistindo-o a entrar triunfalmente no gol do Lá Vai Bola, temido time adversário do Leme. Mas faltava-lhe a natural destreza dos garotos da rua. Uma tarde de domingo, faltou o ponta-esquerda titular do Ipiranga e ele se encheu de esperança. O capitão do time, meio contrafeito, atirou-lhe a almejada camiseta. Jabour vestiu-a com o coração aos pulos, espiando pelo canto do olho as meninas já sentadas na amurada, Silvinha entre elas, em cochichos e risos com suas blusinhas de “ban-lon” e saias plissadas. O juiz já estava de apito na boca, enquanto Arnaldo firmava um olho na bola e o outro em Silvinha, concentrando energia para sair da condição de “babaca” (sic), classe onde vivia. Quando o jogo ia começar se ouviu um coro de “pára, pára”, cobrindo a chegada esbaforida de Porcolino, o ponta-esquerda titular do Ipiranga. Em um segundo, o capitão tirou-lhe a camisa e entregou-a a Porcolino, famoso por um raro gol de bicicleta.  Com a impressão de que lhe haviam tirado a pele, viu-se de volta à classe dos “otários”. Fugindo do olhar de Silvinha, que, certamente, o olhava com desprezo, correu para o mar, de onde saiu nadando para esconder, na água salgada, o choro da vergonha. Também possuo derrotas amorosas e as assumo sem problemas. Uma delas ocorreu quando estudava no mesmo colégio, mas, em sala diferente de uma adolescente moreninha, de grandes olhos negros, que apesar de cultivar um namoro firme, vivia me dando umas profundas olhadas. Acho que pelo fato do seu comprometimento eu fiquei absolutamente "fissurado" por ela e, para mostrar que lhe era absolutamente fiel, não admitia sequer olhar para outra menina durante uns dois anos.Um dia recebi a bombástica notícia: Margarida e Chicó terminaram o namoro! Fiquei absolutamente atônito durante uma primeira semana e a partir daí comecei a arquitetar diante do espelho do banheiro como seria a abordagem pessoal. Ensaiei diversas frases de efeito e sem efeito, mas como nenhuma se revelou infalível, maquiavelicamente, enviei-lhe um bilhete convidando-a para um cinema para à tarde do próximo sábado e um lanche a seguir, onde poderíamos revelar os “nossos” sentimentos.A resposta, também por escrito, não foi tão acolhedora quanto desejava, mas era esperançosa: “… aceito o convite para o cinema como amigos e uma conversa no lanche…”. E no final um sintomático “… por enquanto…”. Foi aí que surgiu um grave e tradicional problema: falta de dinheiro. Eu não trabalhava e meus pais não tinham condições de dispor de nenhuma quantia extra.A solução foi arranjar um “bico” como carregador de uma “fabriqueta” de bebidas. Na manhã da data do encontro, já estávamos no final da entrega num bairro afastado quando ao retirar o engradado do veículo em direção ao bar, dei de cara com a Margarida de braços com sua mãe. Fulminou-me com o olhar, apertou o passo e desapareceu. Imaginei-me caindo num túnel sem fim, com engradado e tudo.Todavia, restou um fio esperança. Perfumado, cabelo com Gumex e vestido com a roupa da missa e com aquele sapato de estimação daquela outra crônica -, na noite aprazada fui até a bilheteria do cinema; comprei dois ingressos e me dispus a esperá-la. Toda morena baixa que surgia na rua, de qualquer direção, fazia meu coração dar pulos dentro do peito, imaginando que fosse ela.Finalmente, cansado de esperar, assisti a última sessão. No saída, em vão, aguardei todos se retirarem, ainda esperançoso de encontrá-la. Sentei no meio-fio da rua de frente ao cinema, aquela altura absolutamente deserta e chorei “lágrimas de esguicho”, como diria Nelson Rodrigues.  Há pouco o Jabour informou também em O GLOBO que, através de um e-mail, a Silvinha, hoje avó, contou-lhe que leu a crônica, mas que, só agora soube da ardente paixão do colunista por ela. E a Margarida? A chance de ela ler esta crônica é infinitamente menor. Mas, não é zero. E aí? Será que ela… ? É melhor não ter esperança.

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