VOLTANDO AO PASSADO

    Eu voltara à minha cidade natal, Belém do Pará, para ministrar um curso de treinamento de pessoal pelo Banco do Brasil. Eu trabalhava no DESED, da Direção Geral do BB. Era o ano de 1969. Certa noite, encerradas as atividades na Agência Centro de Belém, onde eu e mais dois colegas, o prof. Renato Campos e Vicente Alves, ministrávamos diariamente aulas para uma turma de cerca de 40 funcionários daquela filial decidi ampliar meu mergulho no passado e desafiar minhas emoções em relação a ele. Jantei na sede da AABB local, próximo dali, e, por volta das 21 horas, chamei um táxi. Pedi ao motorista que fôssemos até o bairro do Marco, onde eu nasci e vivi toda a minha infância e boa parte da juventude.  Ao passarmos pelo Largo de São Brás, pedi que ele seguisse pela Av. Almirante Barroso, antiga Tito Franco. Solicitei que mantivesse uma velocidade baixa e que, de vez em quando, por mim solicitado, desse uma rápida parada. Meu coração, então bem mais jovem, claro, suportaria aquela aventura.  Eu tinha em Belém toda a minha família, estava até morando, durante o curso, na casa de meus pais, então na Av. Nazaré, mas naquele momento eu desejava estar só. Era um reencontro com o passado para o qual só admitia a presença de minhas lembranças. Passamos pelo estádio do Clube do Remo. Faltavam apenas uns 3 quarteirões para chegarmos à antiga casa que pertencera à minha família por décadas. Pedi que dirigisse ainda mais devagar. Fui reconhecendo algumas casas, outras já não mais existiam ali, haviam sido derrubadas e novas residências as substituíram.  De repente fiquei todo arrepiado ao perceber que estávamos chegando, à direita, ao Estádio da Curuzu, o campo do Payssandu, o maior rival do Remo. Em minha mente vi a imagem deste garoto, subindo numa janela lateral de nossa casa, dentro do escritório do meu pai, para tentar ver, sem pagar, uma parte do gramado do estádio onde eles jogavam. O muro do estádio era baixo. Cruzamos então a Travessa da Curuzu onde, naqueles tempos, morava uma grande amiga da família, a Isa e seu irmão, Uáscar. Ela costumava passar lá em casa quase todos os dias. Como vizinhos ela tinha a família Duran. No quintal deles joguei muitas peladas. Eram 4 irmãos e uma menina. As recordações, naquele momento, disputavam vez em minha mente. Mais alguns metros e paramos bem em frente à bonita e imensa casa com três grandes quintais onde vivi. Além do nosso havia ali, a seguir, outros casarões maravilhosos onde moravam a família Serra Freire e a família Caldas. Ah, as meninas da família Caldas! Eram quatro irmãs, cada uma mais bonita que a outra. Zilda, bela e morena, era a mais velha das irmãs, depois tinha a Madalena que brincavam seria minha namorada. A terceira, pela ordem, era a Conceição. Mignon, sabia que tinha muitos encantos e me jogava todo o seu charme. E eu, bobo, tímido, evitava suas investidas. Só percebi que gostava dela muito tempo depois, quando já era tarde demais. Que belas tardes aquelas em que elas vinham jogar vôlley conosco. O motorista me despertou de minhas deliciosas lembranças perguntando se ficaríamos ali muito tempo. Respondi-lhe que a eternidade certamente seria pequena para tantas recordações. Resolvi então incluí-lo no desfile de minhas memórias. E fui descrevendo nossa casa por inteiro. Ele passou a me ouvir atentamente. “Amigo, subindo aquela escada larga chega-se a esse imenso pátio coberto. Atravessando a grande porta entrava-se para dois salões e para o escritório do meu pai. Pelo corredor, ainda na parte de cima da casa, tínhamos cinco grandes quartos. Após eles outra sala imensa, onde almoçávamos e jantávamos. No fundo desta sala um janelão que nos comunicava com a cozinha. Que bela cozinha, amigo.” “Ao fundo uma pequena copa, tendo à esquerda 3 banheiros, à direita uma dispensa, e  mais ao fundo um pequeno pátio que dava para os três quintais, havendo também uma escada que nos levava para o porão. E que porão. Acompanhava toda a grande área de cima da casa. Nele havia um espaçoso quarto de empregadas onde dormiam as três mais antigas na família, e também um banheiro.” “Seguindo pelo porão encontrávamos outro quarto, este menor, onde eu adorava dormir a sesta numa gostosa rede. Ali sempre dormia, à noite, a empregada mais nova. Tinha ainda uma espécie de ginásio com vários aparelhos de ginástica, e entre os quartos uma grande área onde costumavam colocar as roupas para lavar e para passar a ferro. Ali também, este menino maroto, costumava tentar flertar com uma bonita e jovem empregada, a Ana, educada e carinhosa. Mas, mudemos de assunto.” “Acompanhando a área do porão, pelo lado de fora, havia uma longa entrada de veículos que ia até a garagem, no primeiro quintal, com lugar para dois carros. Na continuação desta área existia uma grande jaqueira, dois tanques de lavar roupa, cobertos, e um grande varal de roupas, feito de madeira trançada.” – Perguntou o motorista: “A casa terminava aí?” – Eu ri e disse que faltava pouco para descrever. “Eram três quintais, como eu falei antes. No segundo tínhamos dois belos exemplares de jambeiros, uma jardineira bem larga, uma laranjeira, um limoeiro, um pé de carambola, e dois de taperebás, frutinha pequena, amarela e muito ácida. Entre este e o terceiro quintal um galinheiro à direita e um chiqueiro à esquerda.” “O terceiro e último dos quintais, amigo, tinha quase a área de um campo de futebol. Havia mangueiras, outros limoeiros, um pé de uxi, entre outras árvores. Do quintal da vizinha do fundo, a amiga Isa, podíamos “tomar emprestado” alguns cacaus, bacuris e abacates. Eu atravessava o muro dela para ir jogar bola na casa dos Durans.” “Como dizem, eram anos dourados para nós. Eu era o mais velho de dez irmãos. Esse monumento de casa foi, alguns anos depois, entregue por meu avô a um “amigo” para saldar uma dívida que, convenhamos, era bem menor que aquilo tudo.”  “Falaram-me que ela vai começar a ser derrubada a partir de amanhã e aqui surgirá creio que um super mercado, entre outras coisas, certamente, pois sua área total é muito, muito grande. Por isso, amigo, eu precisava vir hoje mesmo e a essa hora. Tinha que me despedir, não das minhas recordações, mas de quem as abrigou por tanto tempo. Aqui eu nasci, cresci e fui muito feliz.” Àquela altura nem as sombras da noite conseguiram esconder minha emoção que começou a vazar. Voltei-me para o taxista e pedi que me levasse à Av. Nazaré, casa dos meus pais, à época, onde eu estava hospedado durante o curso. Não havia mais nada a fazer. O futuro costuma esmagar o passado. Dizem que é “progresso.” Pois é.

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