0,07% do total de contas concentra 37% das aplicações
Em um período em que as discussões políticas estão acirradas e gerando brigas entre velhos amigos no mundo real e virtual, um tema que atrai bastante atenção é o da evolução da desigualdade social no Brasil.
Para infelicidade de todos, porém, a discussão se resume ao comportamento do coeficiente de Gini, que indica o nível de concentração de renda, ou a estatísticas sobre redução da pobreza ou da pobreza extrema.
São informações muito importantes, é claro, mas que não contam a história toda.
Foi preciso o pesquisador francês Thomas Piketty fazer sucesso com seu livro “O Capital no Século 21” para a maior parte dos brasileiros se dar conta de que o país não dispõe de uma base de dados pública que indique o nível de concentração da riqueza (estoque de dinheiro e patrimônio) no país, que todos imaginam que seja elevado.
Exatamente por falta de números da Receita Federal sobre essa distribuição que Piketty deixou o Brasil de fora de seu levantamento.
Como quem não tem cão caça com gato, um caminho para se ter ao menos uma pista sobre a questão é usar dados bancários.
Números do Fundo Garantidor de Créditos (FGC) mostram, por exemplo, que, em dezembro do ano passado, havia R$ 1,36 trilhão investidos em CDBs, poupança, letras de crédito imobiliário e agrícola (LCIs e LCAs), que são modalidades de aplicação que contam com a garantia do fundo até o valor de R$ 250 mil por CPF ou CNPJ.
As 92 mil contas de maior saldo, equivalentes a 0,07% do número de contas, concentravam R$ 511 bilhões, ou 37% do volume total aplicado. Movendo um pouco a régua, as 1,27% maiores aplicações – em um subtotal de 1,75 milhão de contas – acumulavam 65% do saldo investido, ou R$ 885 bilhões.
Na outra ponta, 84% das aplicações bancárias reuniam apenas 4,2% do saldo financeiro, ou R$ 57,5 bilhões.
É claro que os dados são imprecisos, já que o patrimônio das pessoas não se resume a depósitos bancários e as contas empresariais também estão computadas.
Mas se alguém quisesse, apenas por curiosidade, aplicar um índice de Gini para medir a concentração das aplicações chegaria a algo próximo de 0,90, que se compara com os 0,50 visto nos dados de renda no Brasil, lembrando que quando mais próximo de 1 mais desigual é a distribuição.
Os dados históricos mostram que não houve mudança relevante na distribuição das aplicações desde 2006, quando os dados passaram a ser divulgados, embora chame atenção o aumento do saldo total, que saiu de R$ 493 bilhões para R$ 1,36 trilhão, com expansão média anual de 15,7%.
Mas esse não é o único dado interessante que se pode tirar dessas estatísticas do FGC.
Os números mostram que, se muito foi feito nos últimos anos para garantir a inclusão bancária, com abertura de inúmeras contas para a população de baixa renda, a “desigualdade de oportunidade bancária” segue bastante pronunciada.
É comum ver especialistas em Finanças pessoais recomendando que os investidores deixem a caderneta de poupança e apliquem, entre outras alternativas, em LCIs e LCAs.
Mas será que é só por desconhecimento e preguiça que a migração não ocorre? Do ponto de vista do investidor, as modalidades são idênticas ao tradicional CDB – ambas dependem do risco de crédito do Banco que emite e são garantidas pelo FGC até o limite de R$ 250 mil -, com a grande vantagem de dar isenção de Imposto de Renda sobre os rendimentos, que em uma aplicação sem o incentivo fiscal variaria de 15% a 22,5%, a depender do prazo de resgate.
A diferença existe apenas para os bancos, que são obrigados a aplicar os recursos captados com esses produtos em crédito imobiliário ou agrícola (lembrando que o investidor que compra a LCI ou LCA não fica sujeito ao risco de crédito do tomador do empréstimo, mas só do Banco).
Não há como negar que as LCIs e LCAs são um sucesso.
De 2006 a 2013, a aplicação nessas duas modalidades deu um impressionante salto de R$ 6 bilhões para R$ 180 bilhões.
Em termos de participação entre as aplicações bancárias, essas letras saíram de 1,3% para 13,1% no mesmo período.
Mas há um porém. Nas aplicações acima de R$ 1 milhão, 21% dos investimentos bancários são feitos em LCIs e LCAs, sendo que a fatia cai para 16,1% nos depósitos entre R$ 100 mil e R$ 1 milhão.
Já na faixa de aplicação de R$ 5 mil a R$ 50 mil essa participação é de apenas 1,5% e diminui para 0,1% nos investimentos abaixo de R$ 5 mil, com apenas 170 mil brasileiros tendo acesso a essa modalidade de aplicação.
A não ser que alguém ache razoável imaginar que quem possui menos dinheiro tem um desejo cívico maior do que os mais ricos para pagar imposto, a única explicação para essa disparidade está no fato de que os bancos simplesmente não ofertam esses investimentos para clientes com pequenas somas para investir.
Aliás, algumas instituições declaram que as aplicações estão disponíveis apenas para aportes de R$ 50 mil ou R$ 100 mil.
Os bancos chamam isso de segmentação da base de clientes. Mas o efeito prático é um privilégio para quem têm mais dinheiro, em detrimento daqueles que têm menos.
A maioria pode achar que não faz muito sentido interferir numa relação privada entre Banco e cliente e que não caberia ao Banco CENTRAL, por exemplo, obrigar uma instituição financeira a oferecer determinado tipo de aplicação para todos os clientes – embora isso ocorra com alguns tipos de serviços bancários.
Mas não custa lembrar que essa é uma aplicação com incentivo fiscal. E que a isenção de Imposto de Renda beneficia não apenas o investidor, que tem uma rentabilidade maior, mas também o Banco, que consegue atrair o aplicador com um custo de captação relativamente menor.
Quando se analisa o produto do ponto de vista de uma política pública para incentivar o crédito imobiliário e agrícola, por que fica a critério dos bancos decidir que esse incentivo fiscal ficará restrito a clientes de alta renda? Parece ser mais uma prática que tende apenas a aumentar, e não a diminuir, a desigualdade de riqueza e de renda, que já é grande no país.
Fernando Torres é repórter de S.A.
E-mail: fernando.torres@valor.com.br
Fonte: Valor Econômico