O Supremo Tribunal Federal (STF) colocou um ponto final em um velho embate entre a polícia e o Ministério Público ao decidir ontem, por sete votos a quatro, que promotores e procuradores podem investigar crimes diretamente, mesmo sem a participação da polícia. A decisão vale para todos os casos sobre o assunto.
Os ministros concluíram o julgamento de um recurso de Jairo de Souza Coelho, ex-prefeito de Ipanema, no interior de Minas, investigado por não cumprir decisão judicial para pagar precatórios. Depois que o MP mineiro fez investigações penais contra Coelho, ele pediu na Justiça a anulação do caso, alegando que a competência para apurar as informações seria apenas da polícia.
Na corrente vencedora ficaram os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia e os já aposentados Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Para eles, o Ministério Público tem poderes amplos para investigar crimes e, portanto, as apurações de promotores e procuradores são válidas.
Eles ressaltaram que, nessa função, o MP tem que respeitar todas as garantias do investigado e documentar os procedimentos, como no inquérito policial. Além disso, a investigação estará sujeita a controle do Judiciário e o MP não poderá praticar atos próprios do juiz, como emitir mandados de busca domiciliar e ordenar escutas.
Já os ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli aceitaram o recurso do ex-prefeito, que anularia as investigações. Os votos vencidos seguiram duas vertentes distintas. Para Peluso, Lewandowski e Toffoli, o MP só pode investigar crimes em situações excepcionais e taxativas. O voto de Marco Aurélio foi mais amplo ao impedir procuradores de fazer qualquer tipo de investigação criminal. Para ele, a função de investigar crimes é exclusiva da polícia.
Após o julgamento o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, negou que o resultado incentive qualquer disputa de poder entre as duas instituições. “A decisão de hoje vai gerar um trabalho cooperado do Ministério Público e da polícia. Não se quer aqui estabelecer uma cisão entre o MP, de um lado, e a polícia de outro. Não se trata aqui de estabelecer um jogo de uma instituição contra outra”, declarou.
O julgamento estava suspenso desde 2012, com o placar de cinco votos favoráveis ao poder de investigação do MP e dois contrários. A discussão foi retomada ontem com o voto-vista do ministro Marco Aurélio, para quem a função do MP é controlar as investigações, e não conduzi-las.
“Quem surge como responsável pelo controle não pode exercer a atividade controlada. O desenho constitucional do Ministério Público na área penal pauta-se pelo controle externo das atividades da polícia”, declarou.
Ele também criticou a possibilidade de concentração de poder nas mãos do MP. “A má estruturação das polícias não legitima no contexto jurídico as investigações do Ministério Público”. E mencionou a Operação Lava-Jato, que desvendou um esquema de corrupção na Petrobras. “Seria possível o MP investigar os detentores de prerrogativa de foro? Seria possível o MP investigar deputados e senadores, mais ainda o presidente da Câmara e do Senado?”
Com um voto também contrário ao poder amplo de investigação do MP, o ministro Dias Toffolli ponderou: “O verbo usado na Constituição Federal [ao tratar da função investigativa do MP] é requisitar diligências, e não promover. E a instauração do inquérito policial.”
Já a ministra Rosa Weber considerou que o MP tem legitimidade constitucional para investigar crimes, mas seguindo alguns limites, como controle judicial, direito do investigado de assistência de advogado, o acesso da defesa às provas produzidas e a necessidade de consultar o juiz sobre a possibilidade de prorrogar investigações.
“Reconhecer o poder de investigação do MP não representa qualquer diminuição do papel exercido pela polícia judiciária. As melhores investigações decorrem da atuação conjunta do MP com a polícia”, falou Rosa Weber. A ministra Cármen Lúcia concordou.
Celso de Mello lembrou que a a polícia seguirá presidindo o inquérito. Ressaltou ainda que a atividade de investigação do MP é essencial nos crimes contra o patrimônio público e naqueles praticados por policiais.
Representando uma associação de policiais, o advogado Wladimir Reale foi à tribuna pedir que o STF deixasse para o Congresso a função de definir em que circunstâncias específicas o MP poderia atuar. De acordo com ele, cinco projetos de lei sobre o assunto tramitam no Congresso atualmente. Mas os ministros negaram, lembrando que a decisão do STF não distinguiu os crimes em que o MP pode ou não atuar.
Os embates frequentes entre a polícia e o MP em torno das investigações penais também já foram alvo de discussão no Congresso. Em 2013, a PEC 37 – que tornava essas apurações exclusivas da polícia – virou tema das manifestações que tomaram as ruas do país em junho. Diante da pressão popular, o Congresso acabou derrubando a PEC naquele mesmo mês. Ao mesmo tempo, fracassaram diversas tentativas de negociação entre policiais e procuradores sobre o limite de atuação de cada órgão. O Ministério da Justiça chegou a formar um grupo de trabalho sobre o assunto, mas sem êxito. Nessas discussões, policiais acusavam procuradores de fazer investigações sem controle e apenas nos casos de maior repercussão, enquanto membros do MP reclamavam que uma eventual restrição das investigações do órgão resultaria em impunidade.
Fonte: Valor Econômico