Toda vez que o Congresso articula “agendas federativas” os cofres do Tesouro correm risco. A iniciativa de ativar uma pauta própria de governadores e prefeitos, liderada pelos presidentes da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), à revelia do governo, é a que pode ser a mais consequente – e mais perigosa – agenda dos últimos anos. Em maio, os líderes do Congresso juntaram duas dezenas de governadores para reunir reivindicações a serem encaminhadas. A partir daí tomou forma uma “pauta bomba” que o ativismo de Cunha e Renan já começaram a ativar.
O ambiente político é o mais propício em muito tempo para ações deste tipo. O Executivo perdeu o controle de sua enorme, e hoje rebelde, base aliada e, com isso, o controle do Congresso. Em vez de apoio majoritário, tem colhido derrotas e é forçado a negociações exaustivas de seus projetos, como se vê no caso do ajuste fiscal. O leme do Congresso está nas mãos do PMDB, do qual o vice-presidente Michel Temer faz parte. Temer não controla o partido, embora possa influenciá-lo. Coordenador político do governo, declarou recentemente que o PMDB deve lançar candidato à Presidência em 2018, o que dá um horizonte para a sua fidelidade a um governo que perdeu a popularidade.
Em si, o maior equilíbrio do pêndulo dos poderes entre Executivo e Legislativo é saudável. Mas a relações entre eles está agora desequilibrada e, fato raro, em desfavor do Executivo. A União, que tem de zelar pelos interesses gerais da nação, ameaça ficar a reboque dos interesses estaduais sem ter força para direcionar e conduzir um consenso justo para ambos. A intenção de Estados e municípios, pelo que já se ventilou sobre a “agenda federativa”, indica que nada de bom está sendo urdido.
As ações de Cunha e Renan confundem pelo foguetório em torno delas. Suas pautas são clientelistas e paroquiais, ainda que queiram ser vistas como expressão da altivez e “independência” do Congresso. A reforma política, votada a toque de caixa, aprovou de fato o principal objetivo de Cunha – o financiamento empresarial das campanhas eleitorais. O sistema político permanece tão ruim quanto antes, com o alívio de não ter piorado com o distritão. Agora, esses expoentes do PMDB fisiológico teceram uma Lei de Responsabilidade das estatais. Um de seus pontos principais é a exigência de sabatina e da aprovação do Senado de indicações de dirigentes das estatais, que poderiam ser destituídos pelos senadores.
O que revela a proposta? Estatais e agências reguladoras se tornaram vítimas do loteamento político. São raros os casos de sabatina – obrigatória para as instituições financeiras públicas, o Supremo Tribunal Federal, Banco Central e agências reguladoras -, em que se rejeitam as indicações do Executivo. Elas são desleixadas e superficiais, meras homologações, porque a verdadeira aprovação ocorreu antes, nos bastidores da barganha com o Planalto. Com o novo projeto, insatisfeitos ou perdedores no loteamento de cargos têm a chance de influir “por fora”, com chance de êxito. Afastar boa parte dos políticos de cargos técnicos, medida moralizadora, não consta nessa lei.
O maior perigo, de longe, é a desorganização das finanças públicas, especialmente a dos Estados, cuja reorganização após o Plano Real foi um requisito essencial para a estabilização econômica bem sucedida. Cunha e Renan estão ouvindo sugestões demolidoras, como a do fim do aval da União para Estados contraírem empréstimos e a de mudança de seus limites de endividamento. Na linha das receitas, sugere-se a obrigatoriedade de a União dividir também com os fundos de participação a arrecadação com as contribuições.
Não são riscos teóricos. O Senado aprovou resolução permitindo que governadores e prefeitos realizem empréstimos no país ou no exterior tendo como base a antecipação de receitas futuras com royalties de petróleo. A antecipação de receitas foi uma rota segura para o naufrágio das finanças estaduais e está proibida há duas décadas.
Enquanto se preparam armadilhas caras para o país, os líderes do Congresso, envolvidos na Operação Lava-Jato, não parecem interessados em apressar a reforma tributária, que patina há décadas, ou acelerar a unificação das alíquotas do ICMS. Ambas fariam o Brasil dar um salto de qualidade em seu caótico e injusto sistema tributário – aí sim, uma substantiva agenda federativa.
Fonte: Valor Econômico