
AUTONOMIA FINANCEIRA, DEFENDIDA APÓS ATAQUES HACKER, CRIA BC MONSTRENGO
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AUTONOMIA FINANCEIRA, DEFENDIDA APÓS ATAQUES HACKER, CRIA BC MONSTRENGO
No meio de ataques hacker ao sistema de pagamentos do qual o Banco Central é o regulador e supervisor, diretores da instituição, liderados pelo presidente, Gabriel Galípolo, ativaram a defesa de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), em tramitação no Congresso desde 2023, que confere independência financeira à instituição, retirando-a do OGU (Orçamento Geral da União).
A PEC 65/2023, se aprovada como propõe o relator da matéria, Plínio Valério (PSDB-AM), depois de incorporadas algumas emendas, transformaria o BC num monstrengo institucional. Pela proposta, o BC se tornaria pessoa jurídica de direito privado, mas integrante do setor público e exercendo atividade estatal, com regime jurídico próprio e poder de polícia.
Uma mistureba das boas, que amplia riscos de ocorrência de conflitos de interesses no desempenho de suas múltiplas funções — emissor de moeda, formulador da política monetária e agência reguladora do setor bancário.
Na entrevista coletiva concedida por Galípolo e diretores do BC, na sexta-feira (5), em que foram anunciados limites para operações de fintechs não cadastradas e não supervisionadas, assim como de capital mínimo para empresas de tecnologia intermediárias nas operações de pagamento, o tema da autonomia financeira do BC ganhou mais destaque do que as medidas anunciadas de contenção de danos aos ataques e desvios de dinheiro, no interior do sistema de pagamentos brasileiro.
De acordo com dirigentes do BC, os desvios de recursos foram possíveis porque a autarquia não dispõe de recursos humanos e financeiros para assegurar cem por cento que ataques de hackers sejam barrados, embora o sistema de pagamentos se mantenha protegido e íntegro. Segundo essa justificativa, são poucos os servidores disponíveis para a tarefa e, além disso, esses poucos são regidos pelas leis trabalhistas menos flexíveis do serviço público, o que complica, no discurso dos queixosos, ainda mais a missão de garantir a segurança das operações no setor bancário.
Essa não é, na verdade, a explicação completa para a vulnerabilidade revelada pelo sistema de pagamentos. Podem até faltar profissionais para as tarefas de assegurar a segurança do sistema e para novas demandas de fiscalização em ambiente digital, mas as brechas também decorreram da decisão, já de algum tempo, de afrouxar os controles no mercado de bancos e de pagamentos bancários. O objetivo do afrouxamento era o de reduzir a concentração no setor, ampliar a inclusão bancária da população e reduzir custos de transação. O próprio Galípolo reconhece essa circunstância, ao declarar que o “pêndulo” dos controles, antes voltados para a liberalização do mercado, agora deve se voltar para a segurança do sistema.
Galípolo também afirmou que nove entre dez pontos da PEC da autonomia financeira do BC já tinham sido aceitos pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O décimo ponto, ainda em discussão, seria o das relações de trabalho para os servidores do BC, na transformação da autarquia para empresa pública de direito privado.
Também nesse item específico, na proposta de emenda constitucional, há uma mistura de tratamentos. Os atuais funcionários que optassem pelo regime trabalhista do setor privado, regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), teriam, no entanto, direito a aposentadoria e outros benefícios como servidores públicos.
Não é por falta de entendimento desse ponto específico, contudo, que a PEC está parada no Senado, não havendo sinais de que tão logo sairá da hibernação. Não há convergência entre o relator e o governo Lula sobre a natureza de empresa privada conferida ao BC pela proposta de emenda constitucional. Além da defesa pelo governo da manutenção da autarquia sob regime jurídico de direito público, existem divergências defensores e opositores da PEC sobre os impactos das mudanças nas contas públicas.
Qualquer que seja o regime jurídico definido, o BC não exerce atividade econômica, diferentemente, por exemplo, do Banco do Brasil. De onde então viriam os recursos para efetivar sua independência financeira? A resposta da PEC é que esse recursos viriam da senhoriagem. Senhoriagem é o termo técnico que define a diferença entre o custo de emitir e distribuir moeda e o valor do dinheiro em circulação.
Na média histórica, essa diferença representou 0,5% do PIB ao ano, entre 2002 e 2010, caiu para 0,25% do PIB, entre 2011 e 2019, subindo para excepcionais 2%, em 2020, com o aumento da emissão de moeda, em razão da pandemia. A tendência é que volte a 0,25% do PIB, o que equivale a pouco menos de R$ 25 bilhões anuais. Isso significa quatro vezes mais do que o Orçamento destinou ao BC em 2025.
São vários problemas decorrentes da destinação das receitas da senhoriagem diretamente ao BC. Como representante do governo, o BC detém o monopólio da emissão de dinheiro, sendo o resultado obtido com a operação incorporado às receitas da União. Com a apropriação de receitas da senhoriagem diretamente pelo BC, excluindo-as do Orçamento público, esses recursos deixaram de fazer parte do bolo que dá suporte a outros serviços públicos — no limite, o dinheiro diretamente apropriado pelo BC teria o potencial de reduzir o volume de recursos para outras áreas essenciais, como Saúde e Educação.
Além disso, no regime de metas de inflação, a senhoriagem é previamente determinada, em função do crescimento da economia e da demanda por dinheiro. Quando mais dinheiro é emitido, maior é a senhoriagem, mas também maiores são as pressões inflacionárias. A transferência de recursos da senhoriagem diretamente ao BC instalaria um formidável conflito de interesses, na medida em que quanto mais emitir — em outras palavras, quanto maior for a inflação — mais recursos ficarariam à disposição da instituição.
Falando em conflito de interesses, ao ganhar autonomia para definir e executar políticas próprias de remuneração e benefícios, tendo como base de comparação o setor privado, o BC financeiramente independente potencializaria também os riscos de escancarar a já existente “porta giratória”.
Chama-se de “porta giratória” o movimento de profissionais do setor privado, que assumem posições no órgão público, e depois retornam ao setor privado, levando com eles conhecimento de questões eventualmente sensíveis, que podem configurar vantagens na competição de mercado. A “porta giratória”, campo de risco para conflitos de interesse, é relativamente frequente em órgãos públicos, principalmente em agências reguladoras setoriais, bem como no próprio BC.
Na entrevista em que defendeu a PEC da autonomia, Galípolo insistiu que o mandato fixo assegurado aos diretores do BC, chave da independência operacional de que a instituição desfruta formalmente, não é garantia para as pessoas, mas para a instituição. Segundo o presidente do BC, não há para os diretores “trade off” — ou seja, dilema — entre tomar as decisões necessárias e manter o emprego. Porém, sem regras claras e formais, que evitem essa possibilidade, a declaração é inconvincente. Nem no setor privado admite-se que as decisões dos dirigentes não sejam regidas por regras e normas de condutas escritas.
O Banco Central é um ornitorrinco institucional, composto por múltiplos organismos e objetivos. Ao mesmo em que é o representante do governo como detentor do monopólio de emissão de moeda, é o responsável pela definição e execução da política monetária e atua como agência reguladora e fiscalizadora do mercado bancário. Isolá-lo financeiramente do governo apenas para superar dificuldades de prover recursos e pessoal necessários ao cumprimento de todas essas funções parece, além de um exagero, uma solução simples, mas equivocada, para um problema complexo. A propósito, as demais dez agências reguladoras setoriais, que sofrem igualmente com falta de recursos e de pessoal, também deveriam dispor de autonomia financeira?
Galípolo alega que a independência financeira, com a consequente flexibilização para contratação de pessoal, recolocaria o BC brasileiro na mesma trilha de muitos outros bancos centrais — de países de economia avançada ou emergentes. Se isso é verdade, também é verdade que cada caso é um caso, com soluções diferentes, conforme o país.
Há, certamente, no fim dessa história toda, outras saídas para os problemas orçamentários e de pessoal do BC, com menos riscos institucionais, do que a autonomia financeira prevista na PEC 65/2023.
*Colunista do Uol.
PEC-65: RUIM PARA O SERVIDOR DO BC,
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