Edição 492 – 09.12.2025
INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL E DESIGUALDADE SOCIAL: QUAL A RELAÇÃO?
Discutir autonomia sem enfrentar mecanismos institucionais que geram seus efeitos distributivos significa aceitar, por omissão, redesenho silencioso das prioridades do Estado.
Fernanda Nedwed Machado (Auditora do Banco Central há 15 anos, na área da fiscalização, e mestre em Finanças pela UFRGS).
O debate sobre a autonomia do Banco Central voltou a ganhar força com a tramitação da PEC 65/2023 no Senado. Embora apresentada como uma modernização institucional inevitável, a proposta costuma ser tratada como um mero ajuste técnico. Essa leitura é reducionista e, sobretudo, ignora a ausência de avaliação séria sobre seus potenciais impactos na desigualdade social do país.
O grau de independência de um banco central é, acima de tudo, uma escolha política com impactos distributivos. As evidências empíricas – entre elas uma análise abrangente disseminada pelo Banco Mundial – indicam que a independência tende a orientar governos para configurações de políticas que, ainda que não tenham a desigualdade como objetivo, acabam por ampliá-la como efeito colateral, ao alterar os incentivos para a adoção de medidas compensatórias.
Diferentes contextos produtivos, fiscais, laborais e institucionais podem dar forma distinta aos mecanismos por meio dos quais a independência do banco central se relaciona com a desigualdade social.
A defesa de ampla independência para a autoridade monetária, incluindo elevado grau de autonomia financeira, apoia-se no argumento clássico de que bancos centrais independentes controlam melhor a inflação por estarem protegidos de pressões eleitorais e expansões fiscais oportunistas. Trata-se de uma reformulação do argumento da inconsistência temporal, segundo o qual governos tenderiam a estimular a economia antes das eleições, gerando inflação futura.
No entanto, essa reformulação, mencionada em debates recentes para justificar politicamente a mencionada PEC, parte de uma concepção reduzida da ação de bancos centrais. Ela ignora que, quando uma autoridade monetária dispõe essencialmente de um único ou principal instrumento operacional, a taxa básica de juros, sua atuação gera efeitos fiscais e redistributivos contínuos, independentemente da ocorrência de choques inflacionários.
Taxas de juros persistentemente elevadas aumentam o custo da dívida pública, comprimem o espaço fiscal para políticas sociais e deslocam recursos do setor público para detentores de ativos financeiros. Esse mecanismo opera mesmo em contextos de inflação baixa e constitui o canal distributivo mais relevante da política monetária em economias emergentes como o Brasil.
Esse canal, por exemplo, não aparece no modelo empírico apresentado por um economista do BCB em artigo recente, lacuna que fragiliza sua conclusão de que a desigualdade e a pobreza em 46 países analisados decorreriam sobretudo de fatores estruturais, e não do grau de independência de seus bancos centrais.
O argumento pró-independência elevada também pressupõe um ambiente institucional que não dialoga com a realidade brasileira. Em países de economia avançada, redes de proteção social robustas, elevada formalização do mercado de trabalho, sistemas tributários progressivos e ampla inclusão financeira atuam como amortecedores institucionais dos efeitos regressivos da política monetária contracionista.
Quando bancos centrais independentes aumentam a taxa de juros nesses contextos, a perda distributiva tende a ser mitigada porque a proteção social absorve choques de renda e emprego. Ademais, a formalização do mercado de trabalho tende a evitar quedas abruptas de salário e ocupação. Além de contar com a capacidade fiscal, que permite ao Estado expandir gasto social ainda que os custos de financiamento estejam mais elevados.
Assim, em países de economia avançada, um elevado grau de independência pode coexistir com relativa estabilidade distributiva, não por causa do banco central em si, mas porque as instituições complementares neutralizam os efeitos regressivos da manipulação da taxa básica de juros.
Em economias emergentes, como o Brasil, o comportamento é estruturalmente distinto — e esse é precisamente o ponto que o mencionado estudo reconhece em sua conclusão, mas não incorpora a seu modelo econômico. O Brasil opera num ambiente em que a política monetária tem impactos assimétricos acentuados: mercado de trabalho informalizado, frágil progressividade tributária, vulnerabilidade cambial, elevada concentração da riqueza financeira e forte dependência de financiamento público.
A manutenção da taxa Selic em patamares elevados, por um “período bastante prolongado”, produz efeitos assimétricos no país. Primeiramente, ela encarece simultaneamente o crédito produtivo e o crédito ao consumo, afetando de forma desproporcional pequenas e médias empresas, além de famílias de baixa renda.
Ao mesmo tempo, esse movimento impõe um aperto fiscal indireto, porque eleva o custo do serviço da dívida pública e reduz o espaço disponível para políticas redistributivas, produzindo uma transferência líquida de recursos do Estado para os detentores de títulos públicos.
Além disso, taxas elevadas de juros operam, na prática, como um mecanismo de redistribuição de renda de devedores para credores, num contexto em que a propriedade de ativos financeiros permanece fortemente concentrada nos setores mais altos da sociedade brasileira.
Esses mecanismos independem de choques inflacionários. Estudos que analisam apenas a relação entre independência do banco central e inflação concluem que a autonomia financeira só afeta a desigualdade quando a inflação é alta, mas esse tipo de modelagem não capta os efeitos estruturais e persistentes do desenho da própria política monetária.
A visão reducionista que apresenta a independência do banco central como mero instrumento de controle da inflação ignora que a política monetária — ao atuar fundamentalmente por meio da taxa básica de juros — exerce, de forma contínua, funções fiscais, regulatórias e distributivas.
Esses efeitos não se dissipam em contextos de inflação baixa, nem surgem apenas em momentos de choque de preços; são inerentes ao próprio desenho institucional que redistribui poder decisório e altera o balanço entre autoridades políticas e tecnocracia monetária.
Ao desconsiderar esses canais estruturais e o modo como interagem com a configuração institucional do Estado brasileiro, corre-se o risco de adotar um modelo desalinhado da sua própria realidade econômica e social, com consequências profundas para o funcionamento das instituições do país e para a distribuição de recursos em sociedade.
Em última instância, discutir a independência do Banco Central sem enfrentar os mecanismos institucionais que geram seus efeitos distributivos significa aceitar, por omissão, um redesenho silencioso das prioridades do Estado — um que redistribui custos e benefícios de forma assimétrica, aprofunda desigualdades e fragiliza a própria legitimidade democrática das decisões de política monetária.
Fonte: JOTA – Fonte de confiança para você
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