Edição 97 – 7/7/2016

O X da questão do teto dos gastos públicos


O quarto item da justificativa de fundamentação da proposta de emenda constitucional que cria teto para os gastos públicos traz uma afirmação poderosa que cativou de imediato a simpatia da grande imprensa e o apoio de formadores de opinião pública: a de que a raiz do problema fiscal do Governo federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária, que variou 51% acima da inflação, só no período de 2008 a 2015, enquanto a performance da receita no mesmo período teria sido de apenas 14,5%. “Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública.”

Ao apresentar esses dados de maneira binária, sem contexto, o governo interino de Michel Temer tenta jogar nas costas do funcionalismo público federal e das rubricas de saúde e educação a responsabilidade pelo desajuste financeiro da União. O artífice de toda essa retórica – o ministro da Fazenda Henrique Meirelles – quer fazer a sociedade crer que a medida “essencial para recolocar a economia em trajetória de crescimento, com geração de renda e empregos” é congelar o salário do servidor público, sobretudo do Executivo, e desvincular da receita as despesas com saúde e educação.

O que o ministro da Fazenda não conta é que nenhuma coisa nem outra é a vilã da diferença de 42 pontos percentuais verificada entre a evolução da despesa e da receita – pegando o próprio exemplo dado na justificativa da PEC 241/2016. Não é preciso o uso de matemática financeira para perceber que existe uma contradição nesse argumento. É só usar a lógica, em seu sentido mais puro. Se considerarmos que a despesa é fator X, a receita é fator Y e que o percentual dos gastos com educação e saúde, fator Z, está fixado em relação ao fator Y, logo se deduz que o aumento da diferença entre X e Y não decorre do fator Z, justamente porque ele está rigorosamente atrelado percentualmente à evolução de Y.

Então, se não podemos responsabilizar a educação e a saúde pelo desajuste nas contas públicas, talvez seja a despesa com o funcionalismo a grande culpada pelo estado das coisas. Só que mais uma vez, a premissa está eivada de vícios. Mas desta vez, será preciso usar equações matemáticas para demonstrar as ambiguidades das afirmações usadas pelo governo para legitimar a PEC do teto dos gastos públicos.

No ciclo do governo de Fernando Henrique Cardoso, que foi de 1995 a 2002, os gastos com o funcionalismo correspondiam a 55% da receita da União. Hoje, essa correlação é de apenas 40%, 15 pontos percentuais a menos. Ora, se os custos com o funcionalismo caíram em relação à receita, também não se pode atribuir ao servidor público a culpa pela crise fiscal do país.

Se esses dois aspectos – funcionalismo e desvinculação de receita –, que são a razão de existir da PEC 241/2016, não causaram o desequilíbrio das contas públicas, quais foram os fatores de aumento desordenado das despesas? Onde foi aplicado esse dinheiro? Quem o consumiu? Por qual ralo escoaram recursos tão valiosos para a sociedade?

Se forem sinceras as motivações do novo governo de neutralizar a verdadeira fonte de tamanho desajuste orçamentário, Temer e Meirelles serão obrigados a olhar para o lado e, para desespero do mercado, deparar-se com o óbvio: as despesas foram infladas ao longo desses anos por uma forte e continuada política de endividamento do Estado, a um custo elevado para o país. Um simples aumento de um ponto percentual na taxa Selic, por exemplo, provoca um custo fiscal entre R$ 15 bilhões e R$ 20 bilhões. As despesas com juros acumuladas de junho de 2014 a junho de 2015, foram da ordem de R$ 420 bilhões. Nada menos de 45% do orçamento da União é para a rolagem da dívida e o pagamento dos juros.

Em junho de 2015, com o país já em recessão, a relação dívida/PIB ficou em 63%, o pior resultado da História. No mesmo mês de 2014, estava em 55% do PIB. Para analistas do mercado, o grande temor é o de que a dívida bruta ultrapasse os 70% do PIB, e indicador levaria o país a novo rebaixamento pelas agências de risco.

Os servidores públicos não estão em dissonância com os anseios da sociedade brasileira nem descolados da realidade. Defendem também um ajuste de contas, desde que feito com qualidade, de maneira a favorecer a recuperação da economia. O funcionalismo já aceitou dar sua cota ao acordar um reajuste salarial muito abaixo da inflação. Mas o que se vê nas intenções anunciadas pelo governo interino são ações mais contundentes, aproveitando o desequilíbrio fiscal para tomar medidas que debilitam o Estado, em especial os programas que promovem o bem-estar.

 É preciso inverter essa lógica, porque a discussão que se fez até aqui, com caminhos que contemplam maior ou menor superávit primário, não vai à raiz do problema. Os cortes no orçamento e a política de juros altos não são utilizados para reduzir os gastos do Estado e torná-lo mais eficiente. São, no fundo, mecanismos para facilitar a descomunal transferência de renda para uma classe que sempre expropriou o Estado.

Chegamos, então, à conclusão de que estamos diante de,no mínimo, uma desonestidade intelectual propalada por quem defende a tese da PEC do teto dos gastos. Vimos que a justificativa do governo, quando colocada em perspectiva, ganha sentido real, desmistifica certos dogmas reiteradamente vendidos como verdadeiros e criminaliza a dívida interna, hoje acima de R$ 3 trilhões. Se se quer colocar no cadafalso princípios pétreos e direitos constitucionais, que ao menos sejam mais transparentes e menos dissimulados, a fim de que haja um debate franco de ideias, mas que também se tenha a coragem de discutir o DNA da dívida interna. Afinal, quem e por que temem uma auditoria na dívida pública?

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