Previdência: o avanço do recuo
Aproveite a paralisa‡Æo de hoje
para ler com aten‡Æo este Apito. Vocˆ vai ficar satisfeito por ter a certeza de
quÆo escusa ‚ a proposta de reforma do governo.
Previdˆncia: o avan‡o do recuo
Fl vio Aguiar, “Cartas µcidas”, do site Carta Maior de 20.7.03.
O movimento de negocia‡Æo, como
tudo na pauta conservadora da maioria da m¡dia, precisa ser
enquadrado num r¢tulo folhetinesco. E criou-se o r¢tulo, como em cap¡tulo de
novela ou
seriado: "o recuo".
Sete anos de pastor Jac¢ servia
LabÆo, pai de Raquel, serrana e bela.
Mas nÆo servia ao pai, servia a ela,
E a ela s¢ por prˆmio pretendia.
Os dias, na esperan‡a de um s¢ dia
Passava, contentando-se com vˆ-la;
Por‚m o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora negada assim sua pastora,
Como se nÆo a tivera merecida,
Come‡a a servir outros sete anos,
Dizendo – Mais servira, se nÆo fora
Para tÆo longo amor tÆo curta a vida!
Ressalvadas a distƒncia e a beleza, esta glosa de Camäes
sobre o caso b¡blico do pastor Jac¢, enganado em suas esperan‡as, serve
para descrever a situa‡Æo do funcion rio p£blico em servi‡o, diante nÆo desta,
mas das reformas da previdˆncia em curso, e que nÆo pararÆo por aqui, ao que
parece.
· luz de um determinado tipo de contrato, determinam-se
regras e expectativas. Mas ao fim e ao cabo, diz uma a outra das partes
contratantes: "sinto muito, o seu horizonte, que estava aqui a tantos metros,
agora foi para l , a bem mais metros de distƒncia. E tem mais, a culpa ‚
sua, seu privilegiado, devorador de impostos". Diz? NÆo ‚ bem assim.
No presente caso, o governo, para justificar sua posi‡Æo,
comprou inicialmente uma ret¢rica utilizada h anos pela m¡dia conservadora,
… luz da agenda neoliberal. Qual seja, a de que suprimir, sem qualquer outra
compensa‡Æo, direitos de trabalhadores, diante da mis‚ria geral, ‚ fazer
"justi‡a social". NÆo d na verdade para dizer que o governo tenha comprado
essa ret¢rica. Talvez o que se possa dizer de modo mais consistente ‚ que ele
foi engolido por ela, e agora se debate nas suas entranhas. Esperemos que
consiga sair.
Na semana que passou pode-se considerar que de fato o
processo de reforma da previdˆncia entrou em negocia‡Æo. Como nÆo poderia
deixar de ser, essa negocia‡Æo ‚ complexa, envolvendo partes, interesses,
partidos pol¡ticos, governadores, o modelamento futuro do aparelho de estado, e
a presta‡Æo de contas em rela‡Æo …s obriga‡äes do passado e do presente.
Imaginar que tal negocia‡Æo seria algo simples ‚ demonstra‡Æo de ingenuidade,
que ela ‚ descart vel seria confissÆo de irresponsabilidade pol¡tica. Mas o
fato – e seja bem-vindo – ‚ que ela come‡ou, seja aos trope‡os, aos arrancos,
aos escorregäes, …s idas e vindas, mas enfim come‡ou.
Mas como tudo na pauta conservadora da maioria da nossa
m¡dia, esse movimento de negocia‡Æo precisa ser enquadrado num r¢tulo
folhetinesco. E criou-se o r¢tulo, como em cap¡tulo de novela ou s‚rie de
filmes: "o recuo". Negociar, para essa pauta, ‚ recuar, a nÆo ser, ‚ claro,
que fosse negociar com as fontes creditadas como tendo autoriza‡Æo para propor e
ditar pol¡ticas para o espa‡o p£blico: FMI, Banco Mundial, e outras agˆncias de
legitima‡Æo de propostas.
TÆo vazia ‚ a id‚ia deste "recuo", enquanto tradu‡Æo de
um percurso de negocia‡Æo, que durante a semana ficou dif¡cil determinar para
onde o governo teria "recuado": se para frente, se para tr s, se para o lado, se
… direita, … esquerda. O que est havendo ‚ um processo de ajuste,
ainda que m¡nimo, da proposta a realidades da vida pol¡tica e social da na‡Æo.
Caracterizar como "recuo" significa que o acordo a que se chegar ser visto,
pela pauta e pela ret¢rica conservadoras, apenas como um est gio na dire‡Æo
do objetivo desejado, que ‚ a desregulamenta‡Æo da estabilidade de acordos
de trabalho, associada, no caso, ao escancaramento (porque aberto j est ) do
setor previdenci rio ao interesse privado.
Significativamente declara‡äes de lideran‡as do PFL ao EstadÆo
desta sexta-feira (18/07) sinalizam
claramente nessa
dire‡Æo. O "recuo" descaracterizou a reforma; ela agora ‚ uma
"mini-reforma", desossada da original; logo ser necess rio fazer outra (como j
fora feita uma em 98). claro que tal tipo de declara‡Æo tem por horizonte a
futura elei‡Æo em 2006. Ou seja, esta reforma tornou-se um mero pref cio de
outra, que vir . Ainda que de modo cauteloso, o Secret rio da Previdˆncia
Social, em entrevista ao Bom Dia Brasil nesta sexta-feira, fixou a
diretriz de que "em dez anos" talvez seja necess rio estabelecer outra reforma.
Dez anos, ou dois, do ponto de vista conceitual, tanto faz: o que se est
balizando ‚ que os contratos sociais sÆo mutantes, nÆo de acordo com as
necessidades sociais, mas de acordo com as necessidades de Estado, que, na pauta
neoliberal, sÆo de primordialmente de caixa e de se manter a disponibilidade
para lastrear a ciranda financeira e os ganhos de capital. A mesma
racionalidade que considera normal por em suspensÆo expectativas de direito que
envolvem vidas inteiras e projetos individuais e familiares, al‚m de condicionar
o desenho do Estado …s necessidades cont beis momentƒneas, se insurge insultada
quando o assunto ‚ rever aumentos de tarifas de servi‡os p£blicos, porque isso
"päe em d£vida a credibilidade dos contratos".
claro que est na ¢tica do governo um certo redesenho das
obriga‡äes sociais do estado junto com um realinhamento do mundo das
organiza‡äes do trabalho. Ao ajuste previdenci rio se soma o crescimento dos
fundos de pensÆo abertos aos sindicatos, o que possibilitaria, na reforma
trabalhista, o fim da contribui‡Æo compuls¢ria firmada na CLT. Mas isto pode
tratar-se simplesmente de um modelo de extra‡Æo social-democrata europeu
aplicado num momento de domina‡Æo imperial e financeira exacerbada. Assim como o
governo se viu na verdade e logo de in¡cio "enquadrado" pela ret¢rica neoliberal
neste epis¢dio da reforma previdenci ria, seu modelo acalentado pode tornar-se
tamb‚m apenas a ponta de lan‡a de um avan‡o da privatiza‡Æo completa do setor,
uma vez que as mesmas for‡as conservadoras que negaceiam seu apoio em votos e em
declara‡äes na m¡dia, tomarÆo este passo como apenas um est gio na dire‡Æo de
seus objetivos maiores. E quanto … CLT, se o caminho for o mesmo, a sua
desregulamenta‡Æo ser apenas o prel£dio da desregulamenta‡Æo completa das
rela‡äes de trabalho.
Como o processo de negocia‡Æo se abriu, o governo pode ainda
recuperar a iniciativa no campo das defini‡äes conceituais e pol¡ticas,
sobretudo se conseguir livrar-se da carga dessa expressÆo: "recuo". E conseguir
convencer-se e convencer os demais agentes que o que agora acontece ‚ o que se
exige numa democracia:
negocia‡Æo, ainda que tardia, como assinalava uma certa bandeira dois s‚culos
e pico atr s.
Comecei com Camäes, termino com ele, no poema em que descreve
sua ang£stia perante tempos em que coisas inusitadas acontecem:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confian‡a;
Todo o mundo ‚ composto de mudan‡a,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperan‡a;
Do mal ficam as m goas na lembran‡a,
do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chÆo de verde manto,
Que j coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudan‡a faz de mor espanto,
Que nÆo se muda j como so¡a.