Edição 0 - 27/11/2003

O TRIUNFO DA RAZÃO CÍNICA

C‚sar Benjamim, economista

O Partido dos Trabalhadores est  morrendo. Nele nÆo resta
mais nenhum esp¡rito transformador, nenhuma autenticidade, nenhum impulso vital.
NÆo tem princ¡pios a defender. NÆo tem mais referˆncias sobre coisa
alguma, pois suas posi‡äes hist¢ricas – sobre a Previdˆncia, os transgˆnicos,
a pol¡tica econ“mica, o FMI ou qualquer outro assunto – estÆo sempre prontas a
ser sacrificadas no balcÆo em que se fazem as negocia‡äes do momento
.

O PT nÆo tem, nem pretende mais ter, projeto de sociedade.
Tem apenas projeto de poder
. Essa vol£pia desenfreada, sem ideal, cria o
ambiente prop¡cio ao cinismo e … corrup‡Æo crescentes, a que estamos assistindo,
pois a melhor maneira de se manter em cima ‚ copiar os poderosos e se aliar a
eles. Hoje, o militante de que o PT precisa, o que ‚ valorizado pela dire‡Æo, ‚
o carreirista obcecado pelo sucesso r pido e a trajet¢ria mete¢rica, disposto a
dizer am‚m, pronto a desmentir amanhÆ, por qualquer pretexto, aquilo que
defendia at‚ hoje.

Os que constru¡ram o partido e nÆo se corromperam nele nÆo
tˆm mais lugar
. Tornaram-se um estorvo. SÆo enxovalhados. EstÆo sendo
substitu¡dos por filiados pela Internet e por gente arrebanhada pelos esquemas
pol¡ticos tradicionais
. Esquemas caros, como se sabe, pois esvaziados da
militƒncia volunt ria que impulsionou o partido quando ele era jovem. Para
financiar essa opera‡Æo e esse novo modo de ser, ‚ cada vez mais tˆnue, no andar
de cima, a separa‡Æo entre pol¡tica e neg¢cios
. Candidatos a deputado, at‚
ontem meros assalariados, falam abertamente em levantar 10 ou 20 milhäes de
reais para suas campanhas, sabe-se l  de que forma. Candidatos a cargos mais
altos aventuram-se em todos os tabuleiros. SÆo as regras do jogo. NÆo h  mais
pudor. Todos caminham nus pelos saläes
.

Valores esquecidos
O PT tornou-se uma via de ascensÆo individual para a afluˆncia material e o
poder. Multiplicam-se as pessoas que se tornam subitamente importantes e que
se sentem, assim, sem ter hist¢ria nem biografia, sem ter passado nem futuro
.
Pobres de esp¡rito, sempre ocupados nas articula‡äes do momento – para a pr¢xima
conven‡Æo, a pr¢xima nomea‡Æo ou a pr¢xima elei‡Æo -, nÆo lˆem um livro, nÆo
se dedicam a conhecer bem assunto nenhum, nÆo sÆo solid rios …s dificuldades do
povo brasileiro, nÆo pretendem ser fi‚is a uma id‚ia de na‡Æo
. Suas
lealdades se esgotam nos limites do grupo de interesse a que estÆo vinculados.
Valores como humildade, perseveran‡a e ideal estÆo definitivamente fora de moda.
Tudo agora ‚ c lculo. Liberado para florescer, o oportunismo tem pressa.
Tempo ‚ poder. Tempo ‚ dinheiro.

A crise do PT ‚ a mais profunda crise da esquerda brasileira.
Para o bem e para o mal, foi o PT a vanguarda pol¡tica da nossa esquerda nos
£ltimos vinte anos, e dentro dele foi vanguarda a Articula‡Æo. Al‚m de
perseguir com coerˆncia uma estrat‚gia pol¡tica e controlar com competˆncia os
principais aparatos de poder, ela propunha a toda a esquerda uma forma de luta
estrat‚gica, que, uma vez vitoriosa, seria capaz de abrir um per¡odo novo de
a‡Æo pol¡tica em nosso pa¡s: a elei‡Æo de Lula … presidˆncia
. Particip vamos
de m£ltiplas iniciativas militantes no cotidiano, e a cada quatro anos
renov vamos nossa esperan‡a em uma possibilidade especial, a de colocar Lula l .

Durou menos de um ano a transi‡Æo de um auge a uma crise.
Hoje, a Articula‡Æo tem um poder que a esquerda nunca teve, mas nÆo ‚ vanguarda
de mais nada, nem para o bem nem para o mal. , simplesmente, outra coisa: um
grupo que ocupa posi‡äes de mando em um Estado corrompido e conservador, forte
para premiar e punir, fraco para transformar
. Adaptado a ele, usa essas
posi‡äes para negociar tudo com todos
. Falar de um "governo em disputa" era
um erro h  nove meses. Hoje ‚ apenas cumplicidade com o charlatanismo.

A coopta‡Æo do PT pelo sistema de poder ‚ a mais vergonhosa
de todas, pois vem desassociada de qualquer ganho real para a base social que
ele deveria representar
. Ao contr rio, ele aceitou ser o algoz dessa base:
a contar do in¡cio do governo Lula, teremos um milhÆo de novos desempregados em
fevereiro de 2004, e os rendimentos do trabalho estÆo em queda livre. A
Previdˆncia p£blica foi desmontada, e anuncia-se para breve o acerto de contas
com a legisla‡Æo trabalhista
. Comparativamente a isso, a social democracia
europ‚ia teve uma trajet¢ria brilhante.

Nenhum de n¢s pede que Lula fa‡a uma revolu‡Æo. Nenhum
desconhece o cen rio, nacional e internacional, que nos cerca. Pedimos apenas
decˆncia, esp¡rito republicano e compromisso com um capitalismo regulado
.
Basta isso para que sejamos chamados de radicais, num pa¡s em que pol¡tica e
indecˆncia sempre foram mais ou menos a mesma coisa, em que o Estado sempre
foi um espa‡o de negociatas e em que, em vez de capitalismo, prevalece a
bandalha
. Insistimos nessas trˆs coisas, porque por menos do que elas a
pr¢pria atividade pol¡tica j  nÆo vale a pena. Por menos, ‚ melhor ir para casa.

O que nos afasta do PT nÆo sÆo posi‡äes adotadas nessa ou
naquela questÆo. SÆo valores e princ¡pios.  esse ilimitado pragmatismo
de quem, uma vez no poder, nÆo pode correr risco nenhum, nem mesmo o risco de
dizer a verdade. No lugar da verdade, marketing, dissimula‡Æo e
engodo, uma enorme opera‡Æo de deseduca‡Æo pol¡tica do povo brasileiro
. No
lugar de uma a‡Æo coletiva, de baixo para cima, um l¡der que desmobiliza e
que, como todo med¡ocre, come‡a a se considerar semideus
. No lugar de um
projeto, espertezas, um discurso para cada interlocutor. No lugar de
di logo, amea‡as, chantagens, nomea‡äes, demissäes. No lugar da luta de
id‚ias, movimentos sempre nas sombras.  o triunfo da razÆo c¡nica.

Heran‡a duradoura – O chefe disso chama-se Lu¡s In cio
Lula da Silva. Sua principal heran‡a, para a esquerda brasileira, nÆo ser 
formada a partir de acertos e erros aqui e acol , naturais na trajet¢ria de
qualquer pessoa. Sua heran‡a mais duradoura ser  constru¡da pela sistem tica
sinaliza‡Æo de valores negativos, que ele ajudou a difundir amplamente nos
£ltimos anos. Isso ‚ que ‚ imperdo vel. Arrogante com os "de baixo" e
subserviente aos "de cima", desqualifica-se, pois o que se espera de um l¡der
popular ‚ exatamente o contr rio: que seja humilde com os de baixo e firme com
os de cima. Aos pobres, "seus filhos", pede infinita paciˆncia, enquanto
atende com presteza aos reclamos dos ricos, os financiadores de campanhas.
Desemprega um milhÆo de brasileiros e anuncia-se como aquele que resgata a
auto-estima do Brasil
. Considera-se corajoso porque tira direitos de
enfermeiras, professores e barnab‚s, conduz servi‡os essenciais ao colapso,
enquanto se dispäe a pagar pontualmente mais de 150 bilhäes de reais em juros
aos rentistas s¢ neste ano
.  o novo l¡der dos trezentos picaretas que
denunciava
. Logo lhes entregar  mais minist‚rios.

Seu governo passar , mas sua lideran‡a deixar  na esquerda um
extenso e duradouro legado: milhares de pessoas despreparadas e sem valores,
que aprenderam no PT que fazer pol¡tica ‚ gerenciar interesses
. Esses
ficarÆo ainda por muito tempo, na forma de uma gera‡Æo de gente perdida, que
nunca lutou e foi derrotada.  isso que d¢i.

(os grifos sÆo nossos)

 

P.S.: Se vocˆ leu o artigo "Pe‡o desculpas", do mesmo autor,
publicado posteriormente e em que ele reflete sobre as palavras apaixonadas que
escreveu acima, saber  que a inteireza e a solidez de seus argumentos permanece.
Seu pedido de desculpas ao leitor reflete apenas a integridade e a cidadania de
um estudioso s‚rio que, num momento emocionado, deixou vir … tona apenas sua
alma brasileira, hoje desconcertada como tantos milhäes de outras.

 

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