O TRIUNFO DA RAZÃO CÍNICA
C‚sar Benjamim, economista
O Partido dos Trabalhadores est morrendo. Nele nÆo resta
mais nenhum esp¡rito transformador, nenhuma autenticidade, nenhum impulso vital.
NÆo tem princ¡pios a defender. NÆo tem mais referˆncias sobre coisa
alguma, pois suas posi‡äes hist¢ricas – sobre a Previdˆncia, os transgˆnicos,
a pol¡tica econ“mica, o FMI ou qualquer outro assunto – estÆo sempre prontas a
ser sacrificadas no balcÆo em que se fazem as negocia‡äes do momento.
O PT nÆo tem, nem pretende mais ter, projeto de sociedade.
Tem apenas projeto de poder. Essa vol£pia desenfreada, sem ideal, cria o
ambiente prop¡cio ao cinismo e … corrup‡Æo crescentes, a que estamos assistindo,
pois a melhor maneira de se manter em cima ‚ copiar os poderosos e se aliar a
eles. Hoje, o militante de que o PT precisa, o que ‚ valorizado pela dire‡Æo, ‚
o carreirista obcecado pelo sucesso r pido e a trajet¢ria mete¢rica, disposto a
dizer am‚m, pronto a desmentir amanhÆ, por qualquer pretexto, aquilo que
defendia at‚ hoje.
Os que constru¡ram o partido e nÆo se corromperam nele nÆo
tˆm mais lugar. Tornaram-se um estorvo. SÆo enxovalhados. EstÆo sendo
substitu¡dos por filiados pela Internet e por gente arrebanhada pelos esquemas
pol¡ticos tradicionais. Esquemas caros, como se sabe, pois esvaziados da
militƒncia volunt ria que impulsionou o partido quando ele era jovem. Para
financiar essa opera‡Æo e esse novo modo de ser, ‚ cada vez mais tˆnue, no andar
de cima, a separa‡Æo entre pol¡tica e neg¢cios. Candidatos a deputado, at‚
ontem meros assalariados, falam abertamente em levantar 10 ou 20 milhäes de
reais para suas campanhas, sabe-se l de que forma. Candidatos a cargos mais
altos aventuram-se em todos os tabuleiros. SÆo as regras do jogo. NÆo h mais
pudor. Todos caminham nus pelos saläes.
Valores esquecidos –
O PT tornou-se uma via de ascensÆo individual para a afluˆncia material e o
poder. Multiplicam-se as pessoas que se tornam subitamente importantes e que
se sentem, assim, sem ter hist¢ria nem biografia, sem ter passado nem futuro.
Pobres de esp¡rito, sempre ocupados nas articula‡äes do momento – para a pr¢xima
conven‡Æo, a pr¢xima nomea‡Æo ou a pr¢xima elei‡Æo -, nÆo lˆem um livro, nÆo
se dedicam a conhecer bem assunto nenhum, nÆo sÆo solid rios …s dificuldades do
povo brasileiro, nÆo pretendem ser fi‚is a uma id‚ia de na‡Æo. Suas
lealdades se esgotam nos limites do grupo de interesse a que estÆo vinculados.
Valores como humildade, perseveran‡a e ideal estÆo definitivamente fora de moda.
Tudo agora ‚ c lculo. Liberado para florescer, o oportunismo tem pressa.
Tempo ‚ poder. Tempo ‚ dinheiro.
A crise do PT ‚ a mais profunda crise da esquerda brasileira.
Para o bem e para o mal, foi o PT a vanguarda pol¡tica da nossa esquerda nos
£ltimos vinte anos, e dentro dele foi vanguarda a Articula‡Æo. Al‚m de
perseguir com coerˆncia uma estrat‚gia pol¡tica e controlar com competˆncia os
principais aparatos de poder, ela propunha a toda a esquerda uma forma de luta
estrat‚gica, que, uma vez vitoriosa, seria capaz de abrir um per¡odo novo de
a‡Æo pol¡tica em nosso pa¡s: a elei‡Æo de Lula … presidˆncia. Particip vamos
de m£ltiplas iniciativas militantes no cotidiano, e a cada quatro anos
renov vamos nossa esperan‡a em uma possibilidade especial, a de colocar Lula l .
Durou menos de um ano a transi‡Æo de um auge a uma crise.
Hoje, a Articula‡Æo tem um poder que a esquerda nunca teve, mas nÆo ‚ vanguarda
de mais nada, nem para o bem nem para o mal. , simplesmente, outra coisa: um
grupo que ocupa posi‡äes de mando em um Estado corrompido e conservador, forte
para premiar e punir, fraco para transformar. Adaptado a ele, usa essas
posi‡äes para negociar tudo com todos. Falar de um "governo em disputa" era
um erro h nove meses. Hoje ‚ apenas cumplicidade com o charlatanismo.
A coopta‡Æo do PT pelo sistema de poder ‚ a mais vergonhosa
de todas, pois vem desassociada de qualquer ganho real para a base social que
ele deveria representar. Ao contr rio, ele aceitou ser o algoz dessa base:
a contar do in¡cio do governo Lula, teremos um milhÆo de novos desempregados em
fevereiro de 2004, e os rendimentos do trabalho estÆo em queda livre. A
Previdˆncia p£blica foi desmontada, e anuncia-se para breve o acerto de contas
com a legisla‡Æo trabalhista. Comparativamente a isso, a social democracia
europ‚ia teve uma trajet¢ria brilhante.
Nenhum de n¢s pede que Lula fa‡a uma revolu‡Æo. Nenhum
desconhece o cen rio, nacional e internacional, que nos cerca. Pedimos apenas
decˆncia, esp¡rito republicano e compromisso com um capitalismo regulado.
Basta isso para que sejamos chamados de radicais, num pa¡s em que pol¡tica e
indecˆncia sempre foram mais ou menos a mesma coisa, em que o Estado sempre
foi um espa‡o de negociatas e em que, em vez de capitalismo, prevalece a
bandalha. Insistimos nessas trˆs coisas, porque por menos do que elas a
pr¢pria atividade pol¡tica j nÆo vale a pena. Por menos, ‚ melhor ir para casa.
O que nos afasta do PT nÆo sÆo posi‡äes adotadas nessa ou
naquela questÆo. SÆo valores e princ¡pios. esse ilimitado pragmatismo
de quem, uma vez no poder, nÆo pode correr risco nenhum, nem mesmo o risco de
dizer a verdade. No lugar da verdade, marketing, dissimula‡Æo e
engodo, uma enorme opera‡Æo de deseduca‡Æo pol¡tica do povo brasileiro. No
lugar de uma a‡Æo coletiva, de baixo para cima, um l¡der que desmobiliza e
que, como todo med¡ocre, come‡a a se considerar semideus. No lugar de um
projeto, espertezas, um discurso para cada interlocutor. No lugar de
di logo, amea‡as, chantagens, nomea‡äes, demissäes. No lugar da luta de
id‚ias, movimentos sempre nas sombras. o triunfo da razÆo c¡nica.
Heran‡a duradoura – O chefe disso chama-se Lu¡s In cio
Lula da Silva. Sua principal heran‡a, para a esquerda brasileira, nÆo ser
formada a partir de acertos e erros aqui e acol , naturais na trajet¢ria de
qualquer pessoa. Sua heran‡a mais duradoura ser constru¡da pela sistem tica
sinaliza‡Æo de valores negativos, que ele ajudou a difundir amplamente nos
£ltimos anos. Isso ‚ que ‚ imperdo vel. Arrogante com os "de baixo" e
subserviente aos "de cima", desqualifica-se, pois o que se espera de um l¡der
popular ‚ exatamente o contr rio: que seja humilde com os de baixo e firme com
os de cima. Aos pobres, "seus filhos", pede infinita paciˆncia, enquanto
atende com presteza aos reclamos dos ricos, os financiadores de campanhas.
Desemprega um milhÆo de brasileiros e anuncia-se como aquele que resgata a
auto-estima do Brasil. Considera-se corajoso porque tira direitos de
enfermeiras, professores e barnab‚s, conduz servi‡os essenciais ao colapso,
enquanto se dispäe a pagar pontualmente mais de 150 bilhäes de reais em juros
aos rentistas s¢ neste ano. o novo l¡der dos trezentos picaretas que
denunciava. Logo lhes entregar mais minist‚rios.
Seu governo passar , mas sua lideran‡a deixar na esquerda um
extenso e duradouro legado: milhares de pessoas despreparadas e sem valores,
que aprenderam no PT que fazer pol¡tica ‚ gerenciar interesses. Esses
ficarÆo ainda por muito tempo, na forma de uma gera‡Æo de gente perdida, que
nunca lutou e foi derrotada. isso que d¢i.
(os grifos sÆo nossos)
P.S.: Se vocˆ leu o artigo "Pe‡o desculpas", do mesmo autor,
publicado posteriormente e em que ele reflete sobre as palavras apaixonadas que
escreveu acima, saber que a inteireza e a solidez de seus argumentos permanece.
Seu pedido de desculpas ao leitor reflete apenas a integridade e a cidadania de
um estudioso s‚rio que, num momento emocionado, deixou vir … tona apenas sua
alma brasileira, hoje desconcertada como tantos milhäes de outras.