Trabalhador Omnilateral
Trabalhador Omnilateral
Todo trabalhador deve ser um ser humano pleno
Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci
Apesar da emergência de novos modelos de gestão do trabalho, que buscam romper com formas arcaicas de produção, e do espaço cada vez maior e mais importante das chamadas Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC), o “chão de fábrica” das corporações brasileiras permanece operando hegemonicamente com velhos paradigmas. Um deles, o mais clássico e com efeitos nocivos para a produção do bem-estar no trabalho, é a separação rígida e ortodoxa entre planejamento e execução. Dito de modo simples, essa separação promove uma clivagem do tipo: nas organizações há os quem pensam e há os que executam. Isto faz lembrar uma máxima, atribuída ao engenheiro F. Taylor: “O operário ideal é aquele que, quando chega à fábrica, deixa o cérebro no vestiário”.
Essa separação entre o pensar e o fazer não consiste apenas em um pragmatismo típico da chamada racionalidade científica do trabalho. Ela é também um modo de exercício do poder nas corporações. Uma forma prática de divisão do trabalho e, sobretudo, de controle sobre o fazer e dos resultados que dele nascem. Um controle, agora mais sofisticado, preciso e rigoroso com o suporte das novas tecnologias da Informação. Essa vigilância eletrônica, com vocação persecutória, tem sido, conforme mostram resultados de pesquisas, fonte crescente de vivências de mal-estar no trabalho: “Me sinto fortemente controlada, vigiada por máquinas e câmeras. Isto me faz muito mal”, diz uma trabalhadora de central de teleatendimento.
Para os que se interessam em promover uma Qualidade de Vida no Trabalho (QVT), de natureza preventiva e sustentável, é fundamental se perguntar que concepção de ser humano e de trabalho encontram-se subjacentes ao paradigma gerencial da divisão entre planejamento e execução. Paradigma atual e presente nas corporações, embora nas últimas décadas as novas tecnologias de gestão do trabalho (ex. adoção da polivalência funcional) venham tentando reciclá-lo via transferência aos trabalhadores de novas responsabilidades sob a batuta de uma autonomia vigiada e restrita.
Trabalhador "em migalhas"
Ao transformar o cotidiano das corporações com base em dois mundos (o dos que pensam e o dos que executam) não é apenas o trabalho que se transforma em migalhas para os seus executores, como lembra a obra clássica de Georges Friedmann, “O trabalho em migalhas”. Os trabalhadores também se transformam em migalhas.
O trabalho fragmentado, repartido e distribuído também “fragmenta” o criador da obra. Ele tende a transformar em pequena porção, parte ínfima, coisa nenhuma ou nada o sujeito da ação: o trabalhador. Nessa lógica de gestão, o trabalhador se transforma em “apertador de parafusos”, “batedor de carimbos”, “repetidor de scripts”.
O desenho de tarefas de ciclos curtos, repetitivas, com solicitação cognitiva limitada e intensa veicula uma concepção de ser humano empobrecida, minguada e alienante. O trabalho se processa de modo que produza coisas que imediatamente são separadas dos interesses e do alcance de quem as produziu. Essa forma de trabalho tende a ocultar ou falsificar a ligação de modo que apareça o processo (e seus produtos) como indiferente, independente ou superior aos homens, seus criadores.
Os modelos de gestão do trabalho que operam nessa lógica de produção só se interessam, de fato, nos trabalhadores, como pernas, braços, corpo e automatismos cognitivos. A promoção da Qualidade de Vida no Trabalho requer um novo paradigma sobre a concepção de ser humano que supere o fenômeno das migalhas.
Fazer história
O trabalhador e o trabalho na ótica de QVT de viés preventivo requer pensar e conceber o homem como ser completo nos moldes do que preconizou a cultura clássica greco-romana. Um ser omnilateral: do latim omnis, que significa tudo, todo, portanto, todas as lateralidades da vida humana.
Que lateralidades são estas? Elas dizem respeito às dimensões físicas, psicológicas e sociais do ser humano que, por natureza, requerem pleno desenvolvimento. A política e os programas de QVT devem, portanto, estar em sintonia com uma perspectiva do trabalhador omnilateral.
Do ponto de vista físico, é fundamental respeitar os limites e as características do funcionamento do corpo humano, prevenindo, por exemplo, as tarefas repetitivas e a solicitação intensiva e prolongada de musculaturas. O trabalho que harmoniza e desenvolve o corpo é fator de saúde e longevidade. Do ponto de vista cognitivo, o trabalho deve ser, sobretudo, momento de criação, de execução com zelo e autonomia. O fazer criativo é sinônimo de desenvolvimento intelectual e também um forte antídoto da monotonia geradora de adoecimento. Do ponto de vista social, o trabalho deve ser gerador de harmonia e de cooperação permanentes. Dessa forma, ele forja o crescimento individual e coletivo e, sobretudo, facilita as práticas de reconhecimento de seus protagonistas.
Uma QVT que se oriente pela perspectiva da omnilateralidade coloca o trabalho no devido lugar: modo de se fazer história e fonte promotora de bem-estar.
(*) Mário César Ferreira. Pós-doutor em Ergonomia Aplicada à Qualidade de Vida no Trabalho (Universidade Paris 1 – Sorbonne – França), professor associado (Instituto de Psicologia – UnB – Brasília), consultor externo (Fórum Qualidade de Vida no Trabalho – BCB – Brasília).
(Este artigo é uma colaboração do Grupo QVT Sinal-RJ).