Edição 41 - 22/05/2013

Catracas no BC da Av. Pres. Vargas

 


Catracas no BC da Av. Pres. Vargas

"… lamentavelmente, a prática da gestão no setor público brasileiro tem permanecido alheia às implicações do novo paradigma tecnológico e às necessidades materiais e humanas dos servidores. Haja vista a contenção salarial brutal e incompatível com uma administração moderna de pessoal Consequentemente, penso que corremos o risco de sermos modernos apenas em tecnologia, pois continuaremos arcaicos ou anacrônicos nas relações de trabalho necessárias para utilizá-la". (1)
 

Esta última segunda-feira, dia 20 de maio, veio com uma novidade para os servidores do Banco Central lotados na Av. Presidente Vargas. Eles encontraram diversas catracas já fixadas no hall de entrada do prédio, consubstanciando uma nova orientação por parte da administração central da instituição no que tange ao controle de segurança nas dependências desta autarquia.

Ainda que o manual de serviço de pessoal (MSP) especifique que “o controle de ocorrências de ponto dos servidores da Carreira de Especialista do Banco Central será processado mediante utilização da ‘Folha individual de Ponto’, de emissão mecanizada”, existe a preocupação por parte do quadro funcional de como será utilizada a informação gerada por essa nova forma de acesso às dependências do BC no Rio.

A possibilidade de adoção futura de um sistema de registro eletrônico de ponto, em substituição à atual Folha de Ponto, embora tenha uma aparente base legal, refletiria uma mudança substancial na qualidade do relacionamento entre a alta gerência do Banco Central e os outros servidores, sujeitos a esse tipo de controle. Caso isso se ocorra, tratar-se-ia de uma escolha assumida por essa administração do BC em detrimento ao modelo atual de acompanhamento de frequência.

Trazendo à tona as diversas facetas e questionamentos associados ao controle de frequência baseado nas chamadas novas tecnologias, este Apito Carioca QVT reproduz abaixo artigo de autoria de Miguel Bruno, que nos conta da experiência de implantação desse sistema no IBGE. Abstraindo-se um pouco das especificidades da carreira dessa instituição em relação à do Banco Central, o leitor deve se deparar com muitos aspectos em comum. 

Boa leitura!

 

 

IBGE: Ponto eletrônico ou ‘taylorismo digital‘?(1)

Miguel A. P. Bruno (2)

Em um sistema de produção baseado nas novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC), que permitem justamente flexibilizar os processos de produção e de trabalho, o controle deve ser efetuado principalmente por resultados. A freqüência conta menos do que os resultados alcançados por funcionário ou equipe (e isto é particularmente muito claro para nós, na ENCE, em razão da avaliação da Capes). O “taylorismo digital” constitui uma das modalidades do neotaylorismo que, em sua origem histórica, foi desenvolvido para controlar o tempo de trabalho dos operários, para extrair-lhes o máximo de excedente econômico com o menor custo para a organização.

Preocupações com a liberdade de criar, com o estresse ou a saúde do trabalhador não são levadas em conta. Todavia, essas práticas gerenciais adaptavam-se às características das antigas bases técnicas produtivas fordistas (taylorismo + mecanização) baseadas em tecnologias não flexíveis e respondiam às exigências de ganhos crescentes de produtividade daquela época. Consequentemente, o ponto eletrônico modifica apenas a forma, mas não o conteúdo e a lógica da gestão tipicamente taylorista do tempo e do processo de trabalho. O relógio de ponto é simplesmente substituído pelo digital. Futuramente, talvez até o final deste século, o chefe imediato poderá ser substituído por um robô ou “androide”, devidamente programado para controlar a equipe de funcionários, mas a natureza da gestão tayloriano-fordista permaneceria.
 

Seis questões

Quando transpomos essa perspectiva para o âmbito do IBGE, várias questões surgem, mas aqui listarei apenas seis delas.

1. O salário é também um fator de incitação ao trabalho, não apenas o controle de frequência. Neste sentido, a teoria econômica moderna já reconhece o papel fundamental do chamado “salário de eficiência”, ou seja, a remuneração adequada ou necessária para fazer o trabalhador “vestir a camisa” da empresa. Dada uma taxa de salário estagnada (como é o caso nesta instituição governamental de serviços) e onde os ganhos de produtividade não podem ser mensurados como no setor industrial, o mero cumprimento de uma jornada de 8 horas não assegura jamais a melhoria de qualidade e quantidade dos serviços prestados pela instituição. O controle eletrônico de frequência tenderá a reduzir o “voo externo” (de alguns servidores), mas não o “voo interno”. Para reduzir este último, seria necessária uma aplicação completa da agenda taylorista no IBGE: a mobilização de gerentes-capatazes sempre dispostos a reprimir e punir os morosos, os dispersos e que furtam sorrateiramente a jornada de trabalho de 8 horas fixada pelo governo. O curioso é que os servidores DAS 4, 5 e 6 ficam fora do controle, o que denota discriminação direta com o pessoal do assim chamado “chão de fábrica”. Estes devem ser enquadrados no taylorismo digital. Como se trata obviamente de taylorismo, a alta burocracia cuidou muito bem para autoexcluir-se e preservar sua liberdade de ir e vir sem maiores constrangimentos. Por outro lado, os níveis DAS 1, 2 e 3 foram incluídos porque como são os que efetivamente convivem no dia a dia com os funcionários do “chão de fábrica”, o seu não enquadramento criaria imediatamente problemas de gestão de pessoal.

2. Não foi realizado um estudo prévio sobre as especificidades dos processos de trabalho desenvolvidos no IBGE e na própria ENCE, levando-se em conta as particularidades, vantagens e limites das NTIC, no que concerne à gestão de pessoal e à própria produção dos serviços prestados. Uma atividade que há 20 anos exigia horas ou dias para ser executada, pode atualmente ser implementada em minutos, com os recursos de informática. Considerando-se uma jornada de trabalho institucionalmente rígida, e agora tayloristicamente controlada, mas sob condições de remuneração praticamente imutáveis, a exploração do trabalho dos funcionários terá lugar mediante o que se denomina “aumento da intensidade do trabalho”. Um exemplo claro da falta de uma compreensão mais qualificada do novo paradigma tecnológico disponível e de suas implicações para o IBGE pôde ser observado ao final da greve dos servidores, em 2005. Os grevistas foram premidos a “pagarem” as horas de paralisação, permanecendo por tempos extras à jornada de 8 horas ou compensando aos sábados. Todavia, muitos apenas cumpriram formalmente a obrigatoriedade da presença extra, sem que isto significasse na prática um excedente de trabalho ou de resultados concretos para a instituição (provavelmente aumentando os gastos de energia e telefone do IBGE). Em outros termos, em sua grande maioria, os servidores simplesmente ficaram mais tempo “presos” na instituição sem terem o que efetivamente fazer de produtivo, porque as NTIC são muito mais produtivas do que as tecnologias anteriores e fazem muito mais com muito menos tempo de trabalho. Uma gestão mais realista, e mais consciente do potencial das NTIC, conclamaria as chefias para listar as pesquisas e trabalhos atrasados em razão da greve. Em seguida, fixaria prazos objetivos para os servidores grevistas concluírem essas atividades, não havendo necessidade nenhuma de compensações formais e estéreis do ponto de vista produtivo.

3. As novas bases técnicas proporcionadas pelas NTIC possuem aplicabilidade multissetorial, com os microcomputadores podendo operar de qualquer lugar, incluindo nossos lares. O atual paradigma tecnológico tem, portanto, possibilitado a realização de trabalhos fora do âmbito das organizações, inclusive com qualidade igual ou superior às realizadas sob o controle imediato ou a presença física do gerente. Basta um computador, os softwares e as bases de dados. Embora não institucionalizado no IBGE, sabe-se pelo convívio com os colegas, tanto da ENCE quanto de outras unidades, que já é frequente a realização de trabalhos nos lares dos funcionários. Para muitos, levar trabalho para casa virou mesmo rotina. Sobretudo, quando há problemas na rede para acessar os dados que precisamos para trabalhar. Todavia, esta atividade institucional (já que se refere a serviços da instituição), mas extra organizacional (porque se realiza fora da mesma), não é computada como tempo de trabalho, apesar de se incorporar aos resultados do IBGE. É uma atividade não remunerada, que permite ao governo ganhos extras de produtividade com custo zero, mas sem que isto nos reverta em ganhos salariais concretos.

4. Parece-me que o controle rígido das nossas viagens, inclusive, quando não implicam em ônus para a instituição – conforme relatados nos e-mails de colegas –, são sintomas claros de preocupações administrativas que se inscrevem numa gestão neotaylorista das relações de trabalho. Enquanto tais, não contribuem em nada para a melhoria das atividades desenvolvidas na instituição, embora possam satisfazer concepções autoritárias e centralizadoras de gestão.

5. A necessidade de coibir os “abusos” de funcionários que desaparecem da instituição quando deveriam estar presentes não justifica o retorno às práticas tayloristas, numa época em que o paradigma tecnológico é pós-fordista. Existem alternativas gerenciais mais criativas, que impediriam que todo o coletivo de trabalhadores pague por condutas irregulares de alguns colegas.

6. Outra questão relevante e que não está sendo considerada refere-se aos custos implícitos no funcionamento do “novo-antigo” sistema de controle taylorista de ponto: os servidores certamente passarão boa parte do tempo de trabalho envolvidos com expedientes burocráticos de justificativas de entradas e saídas fora do intervalo de 8 horas. Outros custos não poderiam nem mesmo ser expressos monetariamente, como o estresse causado pela preocupação adicional de evitar descontos indesejáveis em folha de pagamento. Numa gestão moderna adaptada às novas tecnologias, a preocupação vital para a organização deve estar centrada nos resultados esperados do processo de trabalho. A mera presença física do servidor não garante nem é mais pré-condição imprescindível à execução em qualidade e quantidade necessária dos produtos e serviços que deve executar.

O controle de ponto eletrônico não deve ser apreendido como algo trivial, dotado de racionalidade óbvia, que se justifica por si mesmo, sendo simplesmente necessário a uma instituição “moderna”, que precisa dar o “bom exemplo” de gestão de pessoal e coibir os abusos no setor público brasileiro.

No contexto de uma atividade de serviço como a desenvolvida pela ENCE e pelo IBGE, a gestão digital da frequência deveria ser objeto de uma ampla e profunda discussão com o pessoal mais afetado e que faz efetivamente o IBGE funcionar para a sociedade. Mas, lamentavelmente, a prática da gestão no setor público brasileiro tem permanecido alheia às implicações do novo paradigma tecnológico e às necessidades materiais e humanas dos servidores. Haja vista a contenção salarial brutal e incompatível com uma administração moderna de pessoal Consequentemente, penso que corremos o risco de sermos modernos apenas em tecnologia, pois continuaremos arcaicos ou anacrônicos nas relações de trabalho necessárias para utilizá-la.
 

(1) Artigo publicado no Jornal dos Economistas, Corecon-RJ e Sindecon-RJ, Nº 206, setembro de 2006.

(2) Economista do IBGE, Professor e Doutor em Economia pela EHESS de Paris e IE/UFRJ.

 

 

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