A CALDEIRA DO DIABO

                O Veríssimo contou que tinha um amigo que era tão viciado em “furar” as entradas dos bailes, que só após contar todas as lorotas possíveis sem demover o porteiro, é que apresentava o convite. Lendo a crônica do “mestre”, lembrei de duas histórias pessoais referentes a vigílias em portas.             Num sábado de carnaval dos anos 60, eu era um dos membros da turma dos “penetras” na porta de um clube onde haveria um baile, quando achei que uma morena de cabelos escorridos, fantasiada de pirata, havia me lançado uma olhada convidativa.             Passei as três madrugadas seguintes na expectativa de que o porteiro nos deixasse entrar de graça. Mas, somente no final do baile da terça, é que o portão nos foi franqueado.              Dei rápidas voltas pelo jardim do clube e deparei com a morena pendurada no beiço de um namorado. Exercitei meu instinto de “voyeur” por alguns minutos e constatei que, pela intimidade das carícias, aquele casal havia se formado bem antes do carnaval, que me iludira com o olhar da morena e que as madrugadas de vigílias foram completamente inúteis.               O cine Eldorado, de Friburgo, possuía um porteiro, cujo apelido era “cumpadre” que, segundo se comentava era analfabeto, fato que ninguém ousava testar. Dizia-se que o espectador que apresentasse a carteira de estudante, ele fingia que conferia a idade e deixava entrar. Caso viesse desprovido do documento e com “conversa mole”, ele barrava.             Para assistir ao filme “A Caldeira do Diabo” , meu pai, impressionado com o título, levou a família para assistir. Na bilheteria, quando viu que era proibido para menores de 14 anos, comprou revistas e doces para que eu esperasse na ante-sala até a sessão terminar.             Sentado ali sozinho, comecei a corroer minha inveja por estar impedido de ver as cenas de susto, de medo, de ansiedade, de mistério, os tremores, os arrepios, os becos, as escuridões, as sombras e o terror, que estariam fervendo dentro de uma caldeira manipulada pelo diabo. Fui até ao “cumpadre” para pedir para entrar. Antes que eu falasse alguma coisa, ele alertou: “Não pede! Não vou deixar! Além do que o filme não é o que todos imaginam."             Terminada a sessão, acompanhei minha família na volta para casa num silêncio ensurdecedor. Eles, eu presumi, por terem ficado impactados com o filme. Eu, por não poder assistir as cenas que julguei tê-los deixado daquele jeito.              Quando surgiram os filmes em vídeo, descobri uma cópia da “Caldeira do Diabo, e, ao assistir, constatei, decepcionado, que em vez das cenas horripilantes e aterrorizantes que  imaginei, a película abordava a hipocrisia dos habitantes de uma pequena cidadezinha do interior norte-americano que escondia seus pequenos segredos, adultérios, suicídios, etc. Nção havia na película sequer uma cena de susto e terror.             Depois disso, passei a ressalvar qualquer referência irônica quanto ao analfabetismo do “cumpradre”: “Pode ser! Mas, mas suas opiniões sobre o filme em cartaz eram irrefutáveis”.

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