APENAS UM CÃO? (Uma história verdadeira de amor e sofrimento)

     Numa época em que a maldade humana assina casos os mais escabrosos de crimes hediondos contra adultos, idosos e crianças, incluídos aí filhos, enteados, e afins.  Numa época em que o egoísmo e a indiferença, igualmente humanos, desprezam a miséria, a fome, uma pobreza que se exibe pelas ruas e avenidas em imagens chocantes para quem ainda não perdeu a sensibilidade de perceber e de sofrer com esta triste realidade. Numa época em que se invertem os valores e prevalecem a impudícia, a desonra, a torpeza, em que se justifica, sem a menor cerimônia, atos de corrupção, de indignidade, em que os seres considerados racionais são capazes das mais abomináveis irracionalidades. Numa época em que a mentira se afirma, eclipsa e encobre a verdade tantas e tantas vezes numa sociedade enferma que ainda parece viver sob aquela desastrada e condenável “Lei de Gerson”, a de que devemos todos levar vantagem em tudo, mesmo atropelando a seriedade, a lealdade, a honestidade. Numa época em que o preconceito não apenas fala mal ou vira as costas, mas também mata covardemente por vários motivos, todos injustificáveis.   Numa época em que até a justiça parece ter retirado a venda dos olhos que lhe permitia a faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência, ou na “conformidade com o direito, a virtude de dar a cada um aquilo que é seu”, percebemos que alguns dos seres chamados de irracionais, dão-nos diariamente lições e exemplos tantos de amizade, de lealdade, de uma convivência pacífica, nos transmitindo alegria, muita paz e muito amor.  Temos três cães, Tuane, da raça Coker, já com sete anos, do tipo grande, Touche e Safira, ambos Yorkshire, o primeiro com quatro anos e dez meses, a segunda com cerca de dois anos e meio. Nos últimos dias comuniquei-me com diversos amigos e amigas através de mensagens querendo compartilhar com todos o que se passava aqui em casa. Pedia a todos que ajudassem com uma mentalização positiva. Safira, tão pequenina, tão carinhosa, tão amiga e leal, chegava aos últimos dias de uma gravidez que nos deixava muito ansiosos. Dias antes do prazo estabelecido para a normalidade do parto de repente surgiu para a vida um ser tão pequenino, já chorando e pedindo ajuda, enquanto assistíamos extasiados à Safira, dita irracional, cuidar de tudo, retirar a placenta, cortar com dificuldade o cordão umbilical, lamber seguidamente a pequenina, fêmea, e apresenta-la ao mundo. Eram 22 horas do dia 06 deste mês de outubro. Cerca de duas horas após, por volta da meia-noite, surgiu a segunda fêmea, um pouco maior, mais forte, e, como diz Lena, “já caçando o peito para mamar”. Fomos deitar bem tarde, aguardando os outros três que afinal não nasceram. Mal sabíamos que a segunda viria a ser a única sobrevivente. Nossa sobrinha neta, a bailarina Adriele, a batizou de Sofia. A primeira a nascer só resistiu por dois dias e morreu, não obstante todos os esforços da veterinária, Dra. Rosana, a fazer-lhe boca a boca, massagens suaves, querendo salvar-lhe a vida. O carinho e o respeito de nossos dois sobrinhos netos ao enterra-la no quintal, num cantinho perto do muro, comoveu-nos. No dia seguinte Dra. Rosana tentou, através de manobra obstetra (expressão dela), retirar o terceiro filhote que, por todos os indícios, estaria morto. Foram duas horas de muito trabalho no qual ajudaram Grasiele, filha de Lena, enfermeira em dois hospitais aqui em Cabo Frio, além da auxiliar da médica e também de Lena, por alguns minutos. Safira certamente sofria, mas resistia heroicamente. Alguns perguntariam por que a médica não optou logo pela cesariana, porém ela percebia que Sassá já dava sinais de enfraquecimento e temia que ela não resistisse à cirurgia. No fundo nós também torcíamos para que a médica tivesse êxito, mesmo sabendo que significava mais um pouco de sofrimento à Safirinha. Enfim o terceiro filhote foi retirado. Restavam dois que ela optou por deixar a natureza agir e talvez eles pudessem sair sozinhos. Na manhã seguinte como nada de novo acontecesse, a doutora voltou à tentativa anterior e retirou o quarto filhote, que também estava morto. Logo presumiu-se que o quinto igualmente não estaria mais vivo. A demora da saída do terceiro, que estava de pernas, e já sem vida, deve ter ocasionado a morte dos outros dois filhotes ainda no útero de Sassá. Não foi possível retirar o quinto e último. Dra. Rosana disse então não existir outra possibilidade e teria que partir mesmo para a cesariana. Quando ela saía com Safira na caminha dela, pedi que parasse. Segurei a cabecinha de Sassá com carinho, beijei-a muito e falei algumas coisas no ouvidinho dela, sofrendo com aquele olhar fraco e triste da neta tão querida e amada por todos nós.  Quantos irão entender em toda a sua extensão este tipo de sentimento? Não sei, porém alguns deverão preferir ignorar a minha narrativa, esta verdadeira história de vida, muito sofrida, pois devem pensar “afinal se trata apenas de uma cachorrinha”. Sim, uma cachorrinha que vale para nós mais que certos seres racionais incapazes sequer de se comoverem com tantas atrocidades, racionais. Lena, que já chorara abraçada a mim em certa madrugada, que passou duas noites quase em claro, mas que tentava ser forte, ao ver o carro da médica sair, desmontou novamente aquela falsa fortaleza. Era um final de tarde muito fria e chuvosa. A cesariana iria ser feita em Búzios. Foram algumas horas de expectativa e ansiedade por notícias. Enfim o telefone tocou ali pelas 20 horas. Eu jantava por volta de 21 horas, quando Dra. Rosana entrou pela sala carregando a caminha de Safira com ela dentro. Julguei que estivesse ainda desacordada, mas não, logo ela levantou a cabecinha e dirigiu seu olhar a mim. Não imaginam a felicidade que me invadiu. Todos comemoraram seu retorno.   Ainda bastante sedada, mas de pé, no nosso quarto, Safirinha ensaiou alguns passos e naquela felicidade chorada rimos dos tombos que a nossa menina tomava e do andar vacilante e torto. Tudo era festa, pois ela estava de volta ao lar. Não sabíamos que ainda sofreríamos mais. Fraquinha, Sassá não comia nada e se insistíamos ela vomitava. A pequenina Sofia precisava mamar, mas a mãe não tinha forças nem leite. Sua “mãe” passou a ser a querida Lena. Com uma pequena seringa, de tantas em tantas horas ela lhe tem dado leite, bem devagar, para que Sofia não se engasgue. O esforço tem valido, pois a pequenina Sofia, ainda sem abrir os olhos, já tenta algumas “travessuras”, acreditem. Chegou a escalar as bordas da caminha e conseguiu ir para o chão. É vida que se reinicia, vida que reproduz vida, renovando nossas esperanças. Enquanto isso Safira tomou soro por dois dias. Não posso nem devo, neste texto, contar-lhes todos os detalhes desta “novela” de amor, vida e muito sofrimento. Iria me alongar demais. Louvo aqui a dedicação incansável de Dra. Rosana e sua auxiliar. Ela acaba de fazer nova intervenção cirúrgica de urgência, em Sassá, na nossa mesa de jantar, quando escrevo este texto, porque algo havia infectado os pontos. Mas Safira há de se recuperar, há de sobreviver. Vou encerrar com palavras que a amiga Silvane Sabóia me enviou e eu selecionei de 16 fotos que vieram, só de cachorrinhos. Delas eu também retirei o título deste texto. Obrigado, querida Sil: “Da próxima vez em que você escutar a frase “É apenas um Cão” somente sorria para essas pessoas porque elas apenas não entendem… Porque para mim e para pessoas como eu não se trata de apenas um cão, mas da incorporação de todos os sonhos e esperanças do futuro.”  “E se você também é daqueles que pensam que ele é “Apenas um Cão”, com certeza deve entender bem expressões como “Apenas um amigo”, “Apenas um nascer do sol”, “Apenas uma promessa”… Muitos dos meus melhores momentos me foram trazidos por… “Apenas um Cão”…

    Matéria anteriorRETRATO EM PRETO E BRANCO
    Matéria seguinteA CRÔNICA 600