DE REGRESSO

    Era o meu retorno a Cabo Frio. Tantas vezes já aqui estive antes, conheço de cor cada palmo de chão, cada duna do caminho para a praia, os passarinhos que gorjeiam ao amanhecer do dia, as sombras das amendoeiras da pracinha ao lado da janela de nosso quarto, o beija-flor que, incansável, visita nosso jardim sem usar feriados nem fazer greve. A paz, envolvida no silêncio e beijada pela brisa constante que ameniza o calor do verão e nos provoca arrepios no inverno, convidou meu pensamento a visitar lembranças, recordações, a passear pelo passado que mediu tantos anos de ternura, de carinho, de um viver venturoso, afortunado, onde o desamor jamais conseguiu plantar raízes. Os raios de sol que venciam a tela de alumínio agora encontravam só a mim, postado perto da janela. Sobrava sol do meu lado direito, o que antes não acontecia. Permaneci por alguns minutos inerte, solitário, cúmplice do silêncio que guardava o mesmo segredo que eu. A emoção se escondia no meu coração, também calada. De repente o bem-te-vi, outro amigo freqüente, fiel, marcava sua presença mais cedo que o habitual. Logo a seguir outros se aproximaram e o que era uma saudação solitária logo se transformou num pequeno coral. Foi inevitável uma enxurrada de lembranças a assaltar minha mente, naquele momento, vencendo qualquer resistência à nostalgia. Era a primeira vez que eles “bem-me-viam” no pátio tendo apenas minha sombra por companhia. Olhei em volta e percebi que tudo estava em seus devidos lugares. Embora eu procurasse pela casa inteira não dei falta de nada. Em verdade, o que eu não procurava, pois sabia que não mais encontraria ali, tinha sua presença escrita numa xícara e numa toalha personalizadas, num travesseiro que permanecia no lado oposto ao meu, na cama, em duas peças de roupa esquecidas no armário, num par de chinelos de praia, em várias fotos que semeavam o mesmo sorriso da felicidade que aqui viveu, amou e foi amada. Parecia-me ouvir o eco da voz familiar a descer pela escada, mas logo percebi que era pura fantasia, um desejo inconsciente de quem estava, entretanto, cônscio de sua realidade, mas se permitia, eventualmente, ser um viageiro a cavalgar seus sonhos, seus anseios, no limiar do impossível, do irrealizável. No meu primeiro ensaio rumo à praia, uma surpresa: quando caminhava entre as dunas, surgiu, sem aviso prévio, uma linda garça toda branca. Ela passou a poucos metros de mim e fez seu pouso logo adiante, justo no caminho em que eu seguia.  Todos sabemos que elas habitualmente freqüentam lagoas, charcos, rios, manguezais e, algumas vezes, praias marítimas. Aquela alterara um pouco sua rota para minha surpresa e alegria. Uma recepção inesperada. Passei bem ao seu lado e a garça não mostrou  nenhum incômodo, desconforto ou susto. Ao contrário, se fez parceira do meu caminho.  A “primeira” caminhada começou vacilante, faltavam passos ao meu lado. Os que por mim passavam nada significavam e eu também nada representava para eles. Se o mar tem memória, aí sim, eu diria que ele estava sabendo discernir entre presenças e ausências. Com certeza notou a falta de pegadas, a partir daquele dia. Mas a vida logo vai se conformando com o irremediável, e o mar também.  Afinal, quantas ausências estariam sendo sentidas por tantos outros corações, naquela convivência do caminhar, e que, mudos, procuravam sobrepujar a mágoa, vencer a dor, aliviar a nostalgia?  Solitários seres, mas acompanhados da saudade. Cada amigo que eu reencontrava trazia já pronta sua mensagem de solidariedade e conforto. Rondi, o grandeRondinelli, “deus da raça” do Flamengo de épocas passadas e vitoriosas, meu vizinho por aqui, usou as mãos, o olhar e um silêncio que a mim falou mais que mil palavras, como já disse alguém.  Lembro aqui as duas últimas estrofes de um dos sonetos que o grande poeta Augusto dos Anjos escreveu ao seu pai, morto. Após se certificar de que ele não mais pertencia ao nosso mundo, ele se afastou, solitário, e assim descreveu o que sentia: “E saí para ver a Natureza!Em tudo o mesmo abismo de beleza,Nem uma névoa no estrelado véu … Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,Como Elias, num carro azul de glórias,Ver a alma de meu pai subindo ao céu!”  Também percebi que a vida continuava, indiferente às dores do mundo. A minha era pequena demais na grandeza da amargura, da resignação, da angústia que diariamente assolam tantos e tantos corações e mentes. Regresso a Cabo Frio para me reintegrar à vida, à natureza. Viver é preciso.

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