O FILHO DO MÁRIO

    Era assim que eu costumava ser chamado quando atuava no  Departamento de Treinamento de Pessoal (DESED), do Banco do Brasil, pelo bom amigo Renatão, o Renato Campos, professor, grafotécnico, psicólogo e excelente contista, e também pelo saudoso colega Mallet, ou o Pardal Mallet Alvim, um ser humano maravilhoso.Renato chegou a conhecer meu pai quando esteve em Belém, no ano de 1969, ministrando um curso pelo BB juntamente comigo. Eu coordenava aquele certame e dava aulas sobre etapas de serviço. Mallet, porém, jamais o conheceu, mas no seu jeito muito especial de brincar com todos os colegas passou a me chamar conforme o título acima ao ouvir de mim algumas histórias sobre meu pai.Manuel Mário dos Santos era o nome dele, português nascido na cidade do Porto, tripeiro sim, com muita honra, como costumava dizer. Ele era guarda-livros, ou contador. Meu avô paterno era um excelente alfaiate e também morou e morreu em Belém do Pará. Ambos viveram 86 anos.O sêo Mário também caprichava sempre no vestir, simples, mas elegante, fazendo justiça ao pai que ele tinha, ora pois. Aprendi com ele a gostar tanto da leitura quanto de ouvir música clássica. Ele possuía uma grande coleção daqueles discos antigos, enormes, de 78 rotações e selo vermelho. Eu não só ouvia a obra dos maiores mestres como aprendia com ele sobre a vida de cada um. Bons tempos, sem TV…Tive acesso a clássicos da literatura mundial e deles veio também o meu gosto por escrever, isto desde bem jovem. Curiosamente foi também meu bom pai português quem acabou por me influenciar ao gosto pelo rádio. Possuíamos um daqueles, cheios de válvulas, enorme, que exigia uma boa antena, especialmente para pesquisarmos a radiodifusão internacional. Eu ficava encantado em poder “viajar” pelas  ondas hertzianas e o fazia com certa freqüência…  sem trocadilhos, claro.Como sabem sou o mais velho, ou o mais antigo, de dez irmãos, sendo cinco homens e cinco mulheres, hoje reduzidos a sete, pela vida e pela morte. Meu pai era o referencial e a “palmatória” para o que de bom ou de ruim eu, como primogênito, fizesse. Sempre foi muito tranqüilo, jamais o vi falar mais alto. Sua presença, seu olhar sereno, sua palavra calma, traduziam um disciplinador sem chicote.Lembro-me que ele tinha o máximo de cuidado para jamais proferir algum, digamos, palavrão, na presença de seus filhos. Certa vez levou-me a ver um jogo entre o Remo e a Tuna Luso Comercial. O estádio ficava bem perto de nossa casa. De repente, numa jogada mais ríspida de um jogador do “Leão Azul”, o Remo, o árbitro foi condescendente com o faltoso e isto meu pai não perdoou. Gesticulou junto com a torcida e deixou escapar um xingamento brabo. Rápido caiu em si. Olhou para mim, ali parado e a mirá-lo um tanto surpreso. Eu tinha apenas uns 7 ou 8 anos. De pronto pediu-me desculpas, acreditam (?), e procurou minimizar explicando que aquilo  fora um mau exemplo e que não mais se repetiria. Sêo Mário, grande figura, um pai realmente fora de série. Certo dia, quando eu já tinha talvez uns 12 ou 13 anos, dei uma escapada para  o quintal, que era imenso e dividido em três, e fui procurar sentir o gosto de um cigarro na ansiedade da culpa e tendo como esconderijo o galinheiro. Minha avó materna, com seus olhos de lince, de longe percebeu o que se passava. Ao retornar à casa, entrando pela copa, dei de frente com ela a me esperar.Mandou-me abrir a boca, enfiou seu nariz e sentenciou: “Chico, tu estavas fumando, não? Pois vou contar para o teu pai. Vais ver só.” Encolhi-me  e percebi  que não havia mentira que pudesse desfazer ou disfarçar verdade tão evidente.À noite sêo Mário chamou-me ao escritório dele, como costumava fazer nesses casos. Sem gritos nem ameaças e do alto dos seus bons exemplos, mostrou-me o mal que eu estava fazendo para comigo mesmo tentando acostumar-me ao fumo. Não negou que também já tivera aquela curiosidade mas que dela recuou em tempo. Serviu a lição e, mesmo adulto, tendo voltado a fumar por algum período, nunca esqueci de suas palavras e antes dos 40 anos parei com o cigarro.No ano de 1947, quando fomos morar em Portugal por um ano, ele, minha mãe, dindinha Carmita, Veleda e os irmãos então nascidos, meu pai levou-me a ver um grande clássico do futebol português: Porto x Benfica. Ele, como já disse, tripeiro, portanto portista e eu, então, sem preferências. Durante a partida ele vibrava e procurava aguçar-me o gosto pelas cores azul e branco. O jogo foi emocionante.O placar final mostrou um belo empate em 4×4. Eu tinha 10 anos e confesso que o decepcionei, pois fui mais atraído pelo vermelho das “camisolas” benfiquistas e também pelo belo emblema que ostentam no uniforme. Assim acabou por nascer mais um adepto do futebol lisboeta do Benfica. Ele nunca me disse, mas certamente não gostou, todavia acatou a minha preferência pessoal.Sêo Mário ficou preocupado quando decidi submeter-me a um concurso para trabalhar na rádio Marajoara, recém inaugurada em Belém. Receava prejuízos aos meus estudos, o que nunca aconteceu. Eu estava com 17 anos. Com o tempo ele acabou por ser meu maior incentivador e crítico. Especialmente quanto aos textos que eu escrevia, fosse para programas meus como para minhas crônicas diárias.Ele costumava provar que me ouvia fazendo comentários, críticas, sugestões e sempre me estimulava a prosseguir. Ele tinha um desejo, como outros pais o tinham: me ver com um emprego mais seguro, com possibilidade de uma carreira que garantisse o meu futuro e da família que eu viesse a constituir.Em 1957 surgiu o concurso para o Banco do Brasil. Eu me preparara bem, estudara muito e acabei por obter o quarto lugar. Somente os cinco primeiros ficariam na capital, os demais aprovados foram destinadas a agências do interior do Estado do Pará. Assim acabei permanecendo na minha cidade e junto à minha família.Em setembro do mesmo ano eu tomava posso no Banco do Brasil. Por algum tempo procurei conciliar os dois empregos, o BB e a rádio. Este período durou cerca de um ano, até que, ouvindo sugestão de meu pai e sopesando bem os prós e contras, me decidi por sair da rádio definitivamente, embora aquilo me custasse um alto preço quanto aos meus anseios desde criança, quanto aos meus sonhos de porão. Os anos foram se passando e eu cheguei, no BB, ao Departamento de Treinamento de Pessoal – DESED, no Rio de Janeiro, levado por um amigo que conhecia o meu trabalho, fora do Banco, preparando candidatos para concursos do mesmo. Era o ano de 1966. Em pouco tempo eu já ministrava aulas e também coordenava cursos. Era uma equipe formada por gente da maior dedicação àquele trabalho.Sêo Mário sempre atento aos meus passos. Certo dia, em 1967, fui designado para coordenar o primeiro curso a ser realizado em Belém, na minha terra Natal, e na agência onde eu começara a trabalhar em 1957. Ao final do mesmo comandei a inauguração do sistema de Caixa-Executivo naquela filial por determinação da Direção Geral do Banco.  Aquela manhã, de tantas emoções para mim, presenteou-me, quando eu fazia uso da palavra para centenas de pessoas e autoridades locais, com a surpresa da presença de sêo Mário que, atrás de uma coluna, deixava liquefazer-se sua alegria. Realmente eu me orgulho de ser “o filho do Mário”, hoje uma lembrança, uma saudade infinita, mas que teve tempo de conferir os frutos de sua dedicação, de seu amor, de tantos exemplos que só o enobrecem para sempre, amém.

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