O PIANO

    Desde jovem ela sempre foi muito incentivada pela mãe para estudar piano. Elas não tinham recursos para contratar professora ou ela freqüentar algum curso. Um dia surgiu a oportunidade de uma bolsa de estudo e a jovem passou a estudar o instrumento que a acompanharia por toda a vida. A mãe não cabia em si de contente ao ver a filha, a cada dia, começar a dedilhar as muitas teclas de um piano, no curso, começando a tomar contato com grandes autores da música clássica. Ela sabia que não só estava atendendo a um desejo de sua mãe como seu próprio, pois sempre admirou ouvir pianistas em discos ou pelo rádio. Logo a jovem completou o curso com certo brilhantismo. Àquela altura a vida estava a cada dia mais difícil para ambas, pois moravam sozinhas, embora ela tivesse mais uma irmã e um irmão, ambos mais velhos que ela.  Felizmente a jovem conseguiu ser aprovada num concurso para o Banco do Brasil e foi trabalhar na Ag. Centro do Rio. As dificuldades da sobrevivência foram um pouco aliviadas a partir dali. Continuavam morando numa casa bem pequena no bairro de Santo Cristo. Quando a situação da jovem foi melhorando em termos de salário no emprego elas mudaram para o bairro da Glória. O apartamento também era bem pequeno, conjugado, mas era o que dava para pagar. O piano velho, comprado já usado, ficava na pequena sala. D. Maria, a mãe, pediu à filha que jurasse jamais se desfazer do piano por toda a sua vida. A jovem prometeu. Sempre que havia oportunidade a mãe pedia que ela o tocasse. A jovem, muito apegada à genitora, não deixava de atender a seus pedidos. O tempo foi passando, a vida implacavelmente foi levando os anos até que um dia a jovem conheceu um colega, no Banco do Brasil, sendo que este era desquitado. Ela simpatizou com ele e foi surpreendida, certo dia, quando o colega, e já amigo, perguntou se ela gostaria de viver com ele e se um dia viesse a ser possível, eles casariam. Ela sabia que iria ter pela frente uma longa e dura batalha com a mãe, pois esta não admitia que a filha tivesse por namorado algum moço que não fosse desimpedido, solteiro. Para aliviar a contrariedade de sua genitora, sempre que podia sentava-se ao velho piano e tocava lindas páginas musicais de que a mãe tanto gostava. De alguma forma o piano ajudava, mas logo a realidade voltava a ser o tema de suas conversas e a mãe mostrava-se intransigente. Apesar das idas e vindas com relação ao assunto do namoro da jovem com o desquitado, o fato é que tempos depois a mãe cedeu, meio contrariada, mas a pressão de outros familiares ajudou na “decisão” dela. A jovem continuou prometendo manter o piano em sua casa nova. Compraram então um piano novo e a mãe foi morar com eles. Agora ela tinha dois fãs para ouvi-la tocar, a genitora e o seu companheiro, anos depois, seu marido. Este sempre teve um desejo muito grande de aprender a tocar aquele instrumento, mas não o deixaram, à época, porque se dizia que piano era instrumento de… mulher. Ele se deleitava com a esposa tocando e a mãe dela estava feliz. No centro de tudo as teclas brancas e pretas do piano que iria ficar com eles até o fim de seus dias, com certeza. Se o tempo passava para o casal, mais forte se fazia sentir na saúde de D. Maria, a mãe da jovem. Esta não deixava de lembrar a sua filha a promessa de que, acontecesse o que acontecesse com ela, a mãe, a jovem jamais se desfaria dele. E assim foi. Certo dia, quando ainda moravam em apartamento alugado, D. Maria teve um mal súbito e faleceu sentada em sua cadeira de balanço, sem dizer qualquer palavra. A filha sofreu muito, pois era por demais apegada à mãe. Se esta partira dessa vida, o piano, todavia, continuava ali no seu lugar sagrado. Mudaram de residência algumas vezes até enfim conseguirem ter a casa própria. Nas mudanças lá ia o companheiro inseparável, o piano. Já morando em residência própria em Ipanema, no Rio, eles mandaram fazer um imenso armário onde seriam guardados não só todos os filmes produzidos por ele, como suas fotos, seus inúmeros livros, material de cursos de língua, entre outras coisas, e, na parte debaixo, lá estava o espaço certo para ser colocado… o piano. Mas a vida não dura para sempre e costuma nos revelar surpresas nem sempre agradáveis. Foi quando a referida jovem, que já estava com muito mais idade, teve que enfrentar um ano e meio de uma luta contra o câncer inesperado. Muita dor, sofrimento, angústia, e finalmente um longo período de solidão para o marido dela a partir de quando ela partiu desta vida, em seus braços, no leito de um hospital. O piano continuava lá, em Ipanema, e na parede em frente a ele o retrato de D. Maria, a mãe de Zezé, que teve atendido seu pedido de que a filha mantivesse sempre em seu lar um piano. A partir dali não havia mais nem a mãe nem a filha, esposa daquele que precisava continuar vivendo desde que conseguisse vencer não só a dor da solidão maior como ter algum êxito em reescrever o seu caminho. Foi quando um dos meus sobrinhos pediu-me o referido instrumento, agora mudo, num silêncio cuja visão mais machucava o meu coração. Concordei que o levasse, pois até a promessa não fazia mais sentido.  O piano se foi, deixando uma saudade que demorou muito, muito mesmo a ser, se não superada, pelo menos aliviada ao perceber que a vida ainda me concedia mais uma chance de justificar minha existência já tão longa, através de novas amizades, amor e muita solidariedade.

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