“REQUIESCAT IN PACE”, SÊO JOSÉ

    Quem está acostumado amelerjá háalgumtempo deve selembrar de umacrônica,escritaemjulho/2001,que intituleisimplesmente “Sêo José”.Vários foram oscomentáriosque recebi, emuitos disseramque invejavam o referidosenhorportuguês,nosseus 98anos deidade, umalucidezincrível e umadisposiçãoinvejável. Eu o conhecicerto dia, naqueleinverno, nabarraca “BaleiaAzul”, doamigo Francisco,emCaboFrio,apósnossacaminhada de umahora àbeira domar.Durantenossaalegreconversa descobrimosterváriospontosemcomum, acomeçarpelaminhaorigemtambémlusitana, eporeleter nascido numvilarejopróximo à Águeda,municípioque évizinho daminhaquerida Salreu,onde viviumano deminhainfância,em 1947. Aofalarsobre avida, Sêo Josénos disseque esperavapodercompletar oseucentenário de nascimento, oque ocorreria nesteano de 2003.Pelovigorque exibia,nãoobstanteeventuaismarcasque otemponos impõe inexoravelmente, formamoscoro natorcidaparaque alcançasse aquelameta.Nada parecia impedi-lo. Cremosque se dependesseapenas dele, oamigo comemoraria oseu 100ºaniversário. Antes que se findasse o ano de 2002, passamos 10 dias em Cabo Frio e, ao término de uma de nossas longas caminhadas, paramos, como sempre, na “Baleia Azul”, para nos refazermos com uma deliciosa água de coco, fresquinha. O tempo estava ótimo, e a cidade já dava os primeiros sinais daquela habitual “invasão” de turistas que ocorre anualmente por lá no verão. A certa altura pedi notícias do Sêo José, ao amigo Francisco, mas antes nada tivesse perguntado. Ele baixou os olhos e, com voz triste, me respondeu: “O sêo José faleceu, amigo.” Tomei um choque e um susto, afinal ele parecia tão bem quando o conhecemos. Ele morava com um filho casado, lá para os lados de Minas Gerais. Iam a Cabo Frio de quando em vez e nas férias. De acordo com a explicação do bom Francisco, alguns membros da família haviam tomado a decisão de internar Sêo José em um asilo para idosos. O motivo só eles poderiam dizer. Isto ocorrera pouco antes do inverno de 2002. Sua estada no asilo durou pouco tempo. A vida lhe permitiu alcançar  o 99º aniversário, mas, infelizmente recusou-lhe o sonho do centenário que ele alimentava com muitas esperanças. Elenos confessara, quando conversamos em julho/2001,que sempre viveraintensamentesemjamaispensar namorte, e acrescentou: “Cadadiaparamim éumrenascer,portanto évidaquerecomeça.Amoviver,masnão queromal àmorte,afinalela é umaloteria naqualumdia acertarei!” Aí lembrei-me deumpensamento atribuído aogrande Luís Fernando Veríssimo. Teriaeledito: “Vivatodos osdiascomo se fosse oúltimo.Umdiavocê acerta.” Uma pessoa, mesmo tão avançada na idade, mas com a lucidez e a disposição que ele exibia com muito orgulho, por que precisaria ser isolado do mundo, da sociedade em que vivia, por que teriam lhe proibido a visão do mar que ele sorvia com um olhar sereno, contemplativo, que provavelmente mergulhava em muitas lembranças de um passado quase secular? Do que dele conhecemos, não sobreviveria numa “gaiola”. Sêo José precisava do mundo, do ar livre, da vida sem grades, sem regras que lhe fossem impostas para viver. Quem já possuía uma existência tão longa, amigos, não vivia apenas da realidade a sua volta, mas tinha um mundo inteiro de recordações para visitar constantemente. Por outro lado, ele necessitava também, e com certeza, da atenção e do carinho dos que amava. Nos encontros ocorridos em nossa presença, na praia, parecia tê-los. Enquanto sorvíamos nossa água de coco, naquela tarde de dezembro/2002, num rápido intervalo de nossa caminhada, o amigo Francisco, visivelmente emocionado, decidiu contar-nos um sonho que Sêo José revelara ter-lhe acontecido, pouco tempo antes de sua internação. Meu xará falava e se arrepiava todo. Sêo José sonhara com a visão de uma grande e linda estrela, muito brilhante, toda branca, que o deixou fascinado. Enquanto se deleitava percebeu que havia um vulto parado ao seu lado direito. Teria então perguntado àquela imagem se poderia penetrar na referida estrela, e a resposta teria sido afirmativa.  A essa altura, Francisco não conseguiu segurar duas lágrimas que, ao lhe escorrerem pela face, traduziam o quanto seu coração sentia a falta do amigo. Nós que só tivéramos dois contatos com aquele cidadão português, o suficiente para simpatizarmos fortemente com ele e o admirarmos muito, nos entreolhamos e comungamos da emoção que sacudia o Francisco. Após um suspiro bem fundo, o amigo prosseguiu com a narrativa que ouvira de Sêo José. Segundo ele, ao penetrar na estrela, surgira-lhe uma linda visão de um imenso campo verde, pigmentado por flores de matizes diversos. Vultos estavam sentados num relvado, outros caminhavam lentamente, uma doce brisa soprava, enquanto pássaros gorjeavam, harmonizando seu som com o das águas de um riacho.   Ele teria se sentido como no paraíso. Ao final arrematara afirmando que, no íntimo, algo lhe dizia que logo aquele seria também o seu mundo. Francisco ouvira com total seriedade a descrição do sonho do amigo e lembrava-se de que ele lhe pedira que não falasse sobre aquilo com os seus familiares. A razão Francisco não sabia, mas  talvez desconfiasse.  Digamos que Sêo José já fosse visto como um idoso que sempre os acompanhava à praia, mas preferia ficar na barraca do Francisco, com a visão do mar, do que se torrar ao sol.  Que tinha seus momentos de privacidade dos quais parecia não abrir mão. Nada demais, porém todos desconhecíamos o verdadeiro relacionamento em família, pois às vezes as aparências enganam.  Talvez não fosse este o caso, mas quantos idosos, mais novos do que ele, já foram segregados do seio familiar, invariavelmente por filhos ou netos, noras ou genros, quando os consideram como um “peso” difícil de carregar? Assisti há pouco tempo a um documentário na Tv, feito em um asilo para idosos, onde vários deles se queixavam do afastamento total de seus familiares.  Alguns, chorando, falavam da saudade do filho ou da filha… saudade que não era recíproca, porque aqueles deliberadamente não os visitavam. Ou pior, eles próprios haviam isolado seus entes mais velhos, pois não cabiam mais no espaço de suas vidas. Triste e amarga velhice a contar seus dias numa solidão ainda mais doída pela tortura da ausência daqueles a quem, por tanto tempo, deram amor e ofereceram a vida. Sei que há casos e casos, e não pretendo debater um a um, prendo-me apenas ao do personagem desta crônica. Para pessoas como ele, pouco importa se a casa de idosos é bonita, oferece conforto, boa alimentação, etc. Não creio que haja algum passarinho realmente feliz aprisionado numa gaiola, principalmente se já conheceu antes todo o espaço de que dispõe para voar, para viver. Com toda a atenção que os mais velhos tenham de pessoas que se dedicam a cuidar deles, nesses asilos, gente boa que procura minorar o sofrimento e a angústia de alguns deles, que lhes oferecem carinho, jamais gente como o Sêo José poderia se sentir feliz segregado do verdadeiro seio familiar, privado de conduzir seus passos para além de uma fronteira limitada, afastado do seu mundo e de alguns amigos, cegado da visão do mar que ele tanto amava. Acredito que ele já tenha penetrado naquela linda estrela reluzente. Os que possam ter rido dele, desacreditado de seu sonho, ainda deverão ter que carregar o peso maior de uma existência nesse mundo que, hoje, está cada vez mais distante de alcançar algum status de uma paz universal, quanto mais um paraíso. Pobres mortais.  Seres como ele, porém, são imortais, pois têm o condão, o dom, de continuarem a viver nos corações e nas lembranças dos amigos, em cada lugar onde esteve e deixou a sua marca personalizada, e o mar certamente nunca esquecerá do seu olhar de admiração, respeito e muito amor. Seres como ele alcançam a eternidade. “Requiescat in pace”, Sêo José.

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