Sapato mocassim de Primeira Comunhão

    Impassível meu pai me apresentou a vestimenta que deveria ser preservada até o dia da minha primeira comunhão: terno cinza de calça curta, camisa branca, lenço de bolso combinando com a gravata, meias brancas. Mas, o que realmente se transformou numa paixão à primeira vista foi o sapato mocassin marrom contido no "pacote" que, contrariando a ordem estabelecida, não resisti em passar a usar imediatamente.A princípio, ia a todos os lugares com o "mimo". Só o tirava para dormir e jogar futebol. Depois, diante do desgaste natural, passei a poupá-lo. Só o calçava para alguma saída noturna; uma ou outra festa de família ou para comparecer a "grandes eventos".Mesmo com os meus exacerbados cuidados para conservá-lo "vivo", com o tempo o danado do mocassin teimou em se deteriorar. A sola estava sempre esburacada e no corpo do sapato havia remendo para todo lado. Pior: minha mãe ameaçava jogá-lo no lixo. Dizia que nem as seguidas recauchutagens lhe garantiriam uma sobrevida maior.Numa manhã, antes de sair para o colégio, fui até a prateleira onde o mocassin possuía um lugar de destaque e notei que os sapatos não estavam lá. Sai perguntando pelo seu destino e a única pessoa da casa a responder foi minha mãe. Só que de maneira implacável: "- Fiz o que estou lhe dizendo vou fazer já há algum tempo. Joguei no lixo!".Entre triste e desconsolado calcei o tênis da ginástica e me dirigi para a rua. Entretanto, antes de virar a esquerda do portão e seguir o meu caminho, apelei para um último "fio de esperança": fui até a lixeira que ficava à direita da saída de casa, dei uma remexida no lixo e… Lá estava o meu sapato mocassin! Livrei-o da "morte" com a mesma sensação de júbilo com que se resgata um náufrago em alto mar. Em pé na varanda, meus pais, de braços cruzados e olhares fulminantes assistiam a cena em silêncio.A vida do sapato prosseguiu preservada – não sem ameaças – até o dia que, logo cedo, meu pai me chamou e me deu um "presente de grego": um par de sapatos Vulcabrás de borracha preta – que, imediatamente, passei a odiar – e que deveria ser estreado – impreterivelmente – durante a missa de "Primeira Comunhão" dali a dois dias.Como Primeira Comunhão era um "evento" que exigia o uso do mocassin tomei as devidas e inadiáveis providências: dissimuladamente, por várias vezes, aproveitei o tempo que faltava para a festa para alternar os cuidados com o par de sapatos preferido entre engraxadas de preto e secagem ao sol. Visava proporcionar ao mocassin o aspecto e brilho do Vulcabrás. Entre precavido e desconfiado, andei desfilando com o Vulcabrás para lá e para cá. Precisava demonstrar que tratava com igualdade sapatos adversários.Na noite da festa, percorremos o caminhamos até igreja ouvindo apenas o som característico de couro ressecado em atrito com a calçada. A qualquer tentativa de verificação por parte dos meus pais de onde vinha aquele barulho eu providenciava para que a atenção fosse desviada para outro acontecimento qualquer. Na capela, antes do início das solenidades procurei ficar sempre escondido no interior dos grupinhos que se formavam na tentativa de esconder o que estava calçando. Preocupante também era a pequena distância que separava a Igreja da minha casa. Se a fraude fosse desvendada até o início da missa, certamente que a minha mãe providenciaria a troca do "imortal" sapato pelo Vulcabrás. Também redobrei minhas promessas para não descoberto durante a sessão de fotos realizadas de pé e de frente. O perigo era iminente. Mas, escapei.Manhã do dia seguinte. Preparativos de viagem para Niterói. Outro evento que merecia o mocassin. Fui até a prateleira do banheiro e… O sapato havia desaparecido novamente! Corri para a calçada procurando a lixeira, mas nem deu tempo de chegar até ao portão. Recostada no alisar da porta da sala, minha mãe, com absoluta serenidade e exibindo um irônico sorriso de vitória nos lábios, me avisou:- Não sei porquê, mas esta manhã o caminhão do lixo passou tão cedo… Sei não, mas acho que de sapato para sair, só ficou o Vulcabrás que você adora usar…

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