Fraude com moeda virtual causa perda de R$ 450 milhões

    Um esquema de pirâmide financeira com criptomoedas, supostamente liderado por brasileiros, pode ter deixado um prejuízo de mais de R$ 450 milhões para investidores em pelo menos nove países da América Latina. Por meio de palestras motivacionais e vídeos no YouTube, a empresa Adsply vinha oferecendo, há pelo menos seis meses, rendimentos de até 1,4% ao dia aos clientes que investissem na sua moeda virtual própria, batizada de Adscoin, que estaria em fase de lançamento inicial (ICO, na sigla em inglês).

    No Brasil, a Adsply já é investigada por estelionato pela Polícia Civil de pelo menos quatro Estados (Pernambuco, Minas Gerais, Distrito Federal e Ceará). O caso está sendo analisado ainda pelo Ministério Público Federal em Pernambuco após receber uma queixa de pessoa física há duas semanas.

    Na Colômbia, um grupo de clientes lesados está reunindo as denúncias locais para processar os sete supostos líderes do esquema, cinco dos quais brasileiros. Os colombianos estão em contato com investidores na Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Peru, Equador, Panamá e México para armarem um processo unificado em cada um desses países.

    No total, o esquema, que exigia desembolso mínimo inicial de US$ 1 mil, pode ter afetado 40 mil pessoas. O cliente ficava acompanhando o seu dinheiro aumentar em planilhas de aplicativos diariamente, mas só poderia sacar o rendimento uma vez por mês. O investidor recebia ainda um percentual sobre o lucro gerado por pessoas que atraísse para o negócio.

    Ao que tudo indica, a pirâmide ruiu no início de outubro, quando o empresário Renan Batista, 27 anos, que seria um dos cabeças do negócio, foi a uma delegacia em Uberlândia (MG) e afirmou que tinha sido sequestrado. Segundo o depoimento, o bandido teria levado uma carteira virtual de moedas da Adsply, com 34 mil Bitcoins, como pagamento do resgate. Ontem, o bitcoin era negociado a US$ 8,2 mil.

    Desde então, a empresa não está mais fazendo os pagamentos mensais e os investidores reclamam que não conseguem localizar os donos, explica o delegado Joselito Kherle do Amaral, chefe da Polícia Civil de Pernambuco, onde sete pessoas já prestaram queixa. “Temos caso de gente que vendeu o carro e perdeu tudo.”

    A Polícia Civil de Minas Gerais, que investiga o sequestro, não descarta a possibilidade de ele ter sido forjado. Questionada pela reportagem sobre se Batista estaria foragido, a Polícia disse que não forneceria mais informações para não prejudicar a investigação. O Valor não conseguiu contato com Batista.

    No site da Adsply, um comunicado diz que a empresa tem enfrentado “desafios nas últimas semanas” desde que houve o banimento de algumas de suas contas da plataforma de negociação Bittrex, de forma “arbitrária e injustificada” decorrente de denúncias dos próprios afiliados. A Bittrex, dos Estados Unidos, informou que suspendeu uma pequena parte – 0,1% do total – das contas cadastradas em sua rede em outubro depois de uma revisão das regras de compliance, mas não citou especificamente nenhuma empresa.

    No comunicado, a Adsply também afirma que o “incidente” (ou seja, o sequestro) comprometeu severamente as suas atividades no país e que decidiu encerrar o negócio. A empresa divulgou um cronograma de restituição de investimentos em Luxemburgo, Malta, Cingapura, Rússia, India, Emirados Árabes, Estados Unidos, Paquistão, Argélia, Panamá, Alemanha, Suíça, França, Bolívia, México, Honduras, Brasil, Coreia do Sul, Costa Rica e Espanha. No Brasil, o início da restituição será em março, diz a nota.

    “Não sabemos se de fato a empresa tem atividade em todos esses locais. Ela dizia que estava em 40 países, mas provavelmente era apenas para dar credibilidade e justificar a valorização da sua moeda nas planilhas”, diz Kherle. A Adsply não disponibiliza telefone para contato em sua página na internet. Segundo o delegado, também não foi localizado CNJP associado a Adsply.

    O mercado de moedas virtuais não é regulado no Brasil. Na semana passada, o Banco Central emitiu uma nota alertando para o riscos desse tipo de investimento, como perdas “imponderáveis”, inclusive de todo o capital investido. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acompanhou o BC e divulgou comunicado chamando atenção para possíveis fraudes e pirâmides, ao se investir nos chamados ICOs. A autarquia diz que está “atenta” à evolução desse tipo de oferta e que “tomará, no momento apropriado, as medidas cabíveis no âmbito de sua competência legal”, mas não citou especificamente a Adsply.

    Se confirmada a fraude, a Adsply será a segunda pirâmide com criptomoedas a desmoronar no Brasil este ano. Em setembro, a Polícia Civil do Distrito Federal desmontou a fraude da Kriptacoin, um esquema aos moldes da Adsply que pode ter deixado um prejuízo estimado de R$ 250 milhões. Cinco pessoas estão presas, uma está foragida e até agora a polícia só recuperou R$ 10 milhões. “Na crise, esses esquemas de pirâmide pipocaram”, diz o promotor Paulo Roberto Binicheski, do Ministério Público do Distrito Federal.

    No Brasil, as pirâmides são crimes de menor potencial ofensivo, o que na prática significa que ninguém fica preso por isso. No entanto, é provável que um esquema como o da Adsply esteja associado à lavagem de dinheiro e organização criminosa, explica Binicheski, o que pode levar os envolvidos a penas de reclusão.

    Colômbia lidera grupo de investidores contra Adsply
    Rodrigo Pedroso | Para o Valor, de Medellín (Colômbia)

    Por sua legislação mais dura no combate a fraudes financeiras, a Colômbia hoje é o centro de uma coordenação internacional entre os clientes enganados pela Adsply, que planejam denunciar à Justiça de seus respectivos países os que consideram ser os cabeças do plano. Sete diretores da empresa serão processados pelo Ministério Público colombiano nos próximos meses. Cinco deles são brasileiros.

    A movimentação dos investidores afetados começou no fim de outubro, quando notaram o sumiço desses diretores após o sequestro supostamente forjado por Renan Batista. Por meio das páginas da empresa na internet, investidores começaram a se unir para coletar informações sobre o paradeiro de Batista e discutir o futuro da empresa. Como tiveram dificuldades em encontrar responsáveis, deram-se conta de que caíram em um esquema de pirâmide. A página principal da Adsply para a América Latina no Facebook se tornou centro de reclamações de clientes lesados.

    Um dos clientes é a empresária colombiana Aracelly Serrano, que compilou dados sobre os prejudicados e levou uma denúncia formal ao Ministério Público da Colômbia há um mês. Também pela internet, Aracelly entrou em contato com outro lesado, o comunicador argentino David Gutz, que está trabalhando em um inventário dos afetados pela empresa nos demais países da região.

    A maior dificuldade dos clientes da Adsply é enquadrar o caso na legislação vigente para fraude financeira por esquemas de pirâmide em seus países, conta Gutz. “A região ainda não tem uma legislação específica para o tema. Na Argentina, por exemplo, as regras ou são frouxas ou não existem. Então vamos esperar o julgamento na Colômbia. A partir dele vamos montar processos onde temos lesados nos outros países. Queremos nosso dinheiro de volta e que os diretores respondam pelo que fizeram.”

    Gutz era líder de um grupo de cerca de 60 investidores argentinos e alega ter perdido US$ 1.600. Na Colômbia, onde empresas de marketing multinível são comuns, o rombo é muito maior. A Promotoria Pública do país estima que 10 mil colombianos foram afetados e que o desfalque soma US$ 70 milhões. O país possui uma legislação moderna para o tema em função do histórico de fraudes financeiras, extorsões e lavagem de dinheiro fruto da ascensão do narcotráfico nas décadas de 1980 e 1990.

    Enquanto no Brasil pirâmide financeira é enquadrada como crime de baixo potencial lesivo, no país vizinho os responsáveis pela prática respondem criminalmente e podem pegar até 20 anos de prisão e pagar multa de valor equivalente a até R$ 50 milhões. A prática pode ser caracterizada como “coleta de dinheiro do público de forma maciça sem aval de autoridade governamental competente” – definição da lei colombiana para punir negócios operados com dinheiro oriundo do tráfico de drogas e extorsões.

    No começo de outubro, a CVM colombiana emitiu declaração afirmando que a Adsply era uma empresa ilegal no país após denúncias. “Na Colômbia a promotoria vai incriminar os responsáveis, pois temos muitas provas. A Adsply tem presença muito forte no país. E depois vamos assessorar os afetados nos outros países, pois se trata de um golpe internacional”, afirma Aracelly Serrano.

    O caso vem sendo trabalhado por um grupo tripartite: líderes regionais afetados, um grupo de detetives contratados para levantar provas e os promotores públicos colombianos. O grupo estima que nos países latino-americanos com exceção do Brasil o número de investidores lesados chegue a 20 mil. A previsão é que o caso seja julgado até o início de 2018. Caso condenados, os diretores entrarão na “lista vermelha” da Justiça colombiana, com ordem de captura internacional.

    Apesar da mobilização, muitos investidores estão pessimistas. O engenheiro colombiano William Richards, um dos lesados, diz não saber quão efetivo será o processo já que os diretores não vivem na Colômbia. Ele afirma que o total investido pelo grupo que representa foi de US$ 30 mil. “Minha história é igual à da maioria. Nos apresentaram o projeto, com sede em Cingapura e escritórios no Brasil. Pareciam sérios. O pior é que se a gente tivesse investido o dinheiro em Bitcoins diretamente teríamos o triplo. Só peço que a Justiça brasileira prenda esses sujeitos”, diz.

    Fonte: VALOR ECONÔMICO

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