Em novembro de 1993, o Brasil finalizava o acordo que o tirou da condição de pária internacional e permitiria o lançamento do Plano Real
PAULO SILVA PINTO
SÍLVIO RIBAS
Há duas décadas, o Brasil celebrava o acordo que tirou o país da condição de pária no mercado financeiro internacional, graças à renegociação da dívida externa. O último capítulo dessa história encerrou-se, porém, apenas no mês passado. Sem alarde, venceram em 15 de setembro os Brazilian Investment Bonds (BIB), emitidos em 1988, remanescentes da dívida externa brasileira antes de sua conversão em outros títulos, por meio do chamado Plano Brady.
O advogado norte-americano Whitney Debevoise, que ainda trabalha no escritório de Washington contratado no governo Sarney para representar o Brasil nas negociações, afirmou que a emissão desses papéis permitiu o desenho de todo o Plano Brady, que foi assinado por vários países latino-americanos endividados. “O Brasil merece reconhecimento por isso”, disse em entrevista ao Correio.
Embora a emissão fosse de só US$ 1 bilhão dos US$ 86 bilhões de dívida, houve grande resistência do governo dos Estados Unidos à proposta do então ministro da Fazenda brasileiro, Luís Carlos Bresser Pereira, e do presidente do Banco Central (BC), Fernão Bracher. “O James Baker (secretário do Tesouro no governo Reagan) dizia que a emissão não decolaria. Mas decolou”, contou Debevoise.
A crise da dívida tem sua raiz em empréstimos bancários contraídos por empresas e pelo governo ainda no fim dos anos 1970, graças à liquidez internacional por conta dos recursos acumulados nos países exportadores de petróleo, os chamados petrodólares. Entre 1978 e 1983, a dívida externa brasileira saltou de US$ 43,5 bilhões para US$ 81,3 bilhões. No início dos anos 1980, os juros, que eram flutuantes, subiram muito e a dívida tornou-se incontrolável. Como o Brasil tinha baixas reservas de divisas estrangeiras, as empresas começaram a pagar o que deviam lá fora ao BC, que tornava-se responsável pelo débito.
O montante era rolado praticamente a cada ano, em complicadas negociações. A falta de acesso ao mercado global significava, entre outras coisas, que os cartões de crédito brasileiros não eram aceitos no exterior, um problema também para os técnicos que participavam das reuniões com banqueiros. “As conversas se prolongavam muitos dias além do previsto. Tínhamos de pagar o hotel em dinheiro, a cada semana. Às vezes alguém se esquecia e quando chegava encontrava as malas fechadas, fora do quarto”, relatou José Linaldo de Aguiar, que foi chefe do já extinto Departamento de Dívida Externa do BC.
Em 1990, o governo Collor destacou um funcionário especialmente dedicado ao tema, o negociador da dívida externa, com gabinete no BC, mas respondendo diretamente ao ministro da Fazenda. O primeiro titular do cargo foi o diplomata Jorio Dauster (leia entrevista abaixo). Ele foi mais tarde substituído por Pedro Malan, que, quando tornou-se presidente do BC, já no governo Itamar Franco, cedeu a cadeira da dívida a André Lara Resende.
“Recuperar a credibilidade como pagador era a condição básica para o Brasil estabilizar sua moeda e perseguir dias melhores. Se o país agora é credor, é porque conquistou crédito”, lembra Marcílio Marques Moreira, ministro da Fazenda no governo Collor. Dauster começou a desmontar a maior barreira ao sucesso econômico do país, resultado da combinação de crises externas disparadas com moratórias de pagamentos de juros por parte de países, inclusive o Brasil (1987 e 1989).
Para economista Carlos Eduardo de Freitas, que foi diretor do BC (governos Sarney e FHC) e secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (governo Collor), Dauster destravou as negociações ao liberar as empresas, inclusive estatais, para pagar suas obrigações no exterior, reduzindo o problema à dívida assumida pelo governo.
Sem o FMI
Um entrave, porém, estava no Fundo Monetário Internacional (FMI), que não queria endossar a troca da dívida brasileira por títulos. “O FMI estava certo”, avalia Freitas. Segundo ele, o maior problema era a capacidade de pagamento do governo — a carga tributária era de aproximadamente 20% do Produto Interno Bruto (PIB), pouco mais da metade do que é hoje, e o governo não tinha força política para ampliá-la.
Sem o FMI, a saída foi comprar títulos do Tesouro norte-americano como garantia para os bradies. “Essa negociação foi secreta”, relata Debevoise. No momento da conversão da dívida em títulos, diante da resistência do mercado à falta de anuência do FMI, essas garantias foram apresentadas. O acordo foi realizado em novembro de 1993. Em abril de 1994, o Brasil aderiu formalmente ao plano batizado com o nome do secretário do Tesouro dos EUA, Nicholas Brady. O acerto foi indispensável para lançar, mais tarde, o Plano Real. “Mas a perspectiva do Real também deu solidez ao acordo da dívida”, explicou Debevoise.
João Rogério Sanson, economista da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em finanças públicas, descreve aquele momento como a consumação de decisões corajosas dentro do que a conjuntura mundial. “A América Latina e o Brasil em especial precisou fazer duros ajustes internos e institucionais para conseguir equacionar a ajuda ofertada pela Casa Branca. Os sacrifícios levaram à troca via títulos bradies de endividamento, com prazos mais dilatados, descontos de até 35% e juros menores e fixos”, sublinhou.
Sanson acrescenta que as condições favoráveis obtidas só se mantiveram com seguidas reformas monetárias e fiscais, culminando no tripé da sustentabilidade (câmbio livre, superavit primário das contas públicas e metas de inflação), do segundo mandato de FHC.
Com o Plano Brady, praticamente toda a dívida externa foi trocada por sete títulos, chamados de bradies brasileiros, cuja emissão foi autorizada pelo Senado Federal. Esses títulos foram substituídos progressivamente pelo governo antes de vencerem — a última dessas operações se deu em 2006, com a quitação de US$ 15,6 bilhões. “São papéis que tinham o ‘pecado original’ de terem sido emitidos naquela negociação”, relata José Linaldo de Aguiar, ex-chefe do departamento da dívida externa.
Ao fazer o último resgate dos bradies, o então presidente da República Lula usou politicamente a condição de credor do FMI para criticar o antecessor. Moreira receia que o país possa estar perdendo as bases construídas no começo dos anos 1990 graças à negligência com as contas externas. “Prova disso é o crescimento potencial do Produto Interno Bruto (PIB), cada vez mais medíocre, em torno de 2,5%”, destacou.
Fernando Ferrari, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ressalta que a volta do Brasil ao convívio do mercado financeiro mundial, agora no contexto da plena globalização, foi fundamental para os avanços de renda e de percepção externa verificados até a primeira década deste século. “Estávamos marginalizados e aprendemos a fazer sacrifícios para voltar a merecer crédito. Essa lição não pode ser esquecida”, finaliza.
>> entrevista Jorio Dauster
“Pagamos um preço altíssimo”
O diplomata e atualmente consultor empresarial Jorio Dauster tem em seu currículo o inusitado cargo de negociador da dívida externa do Brasil, que desempenhou entre 1990 e 1991. Sua larga experiência em questões relacionadas ao comércio internacional, sobretudo o de café, o credenciou a buscar com os credores o fim da traumática moratória de 1987. Aos 76 anos, ele olha satisfeito os resultados desse desenlace como garantia de quase duas décadas de estabilidade econômica e faz questão de lembrar que o calote impôs duros sacrifícios, aparentemente ignorados pelos governos petistas. “Não podemos nos esquecer de que durante muito tempo pagamos um preço altíssimo em razão disso, sobretudo em termos de baixas taxas de crescimento”, disse nesta entrevista ao Correio.
O presidente Lula fazia questão de comemorar a condição de credor externo do país como um feito de seu governo. Mas essa mudança de perfil levou décadas para ocorrer, não foi?
Sim. Na esteira da chamada crise do petróleo e da brutal elevação dos juros norte-americanos, o Brasil simplesmente “quebrou” na década de 1980. Quando o presidente José Sarney anunciou que o país entrava em moratória, em 1987, buscou-se dar uma roupagem ideológica a esse gesto, embora na verdade não tivéssemos mais quaisquer condições de honrar os inchados compromissos externos enquanto a dívida privada era “estatizada” via centralização do câmbio. Com isso, a dívida pública externa já ultrapassara a barreira dos US$ 100 bilhões, que hoje valeriam muitíssimo mais. Saímos do buraco no início dos anos 1990, quando negociei os juros atrasados e o ministro da Fazenda, Pedro Malan, negociou o estoque da dívida. Não podemos nos esquecer de que durante muito tempo pagamos um preço altíssimo em razão disso, sobretudo em termos de baixas taxas de crescimento.
A dívida externa brasileira é algo pacificado? Há riscos de que ela possa evoluir de forma contrária às expectativas?
Os anos de bonança internacional propiciados pela relação simbiótica entre os Estados Unidos e a China permitiram que, graças à melhoria dos termos de intercâmbio das commodities, o Brasil acumulasse um colchão de reservas em moeda forte superior a US$ 370 bilhões, valor antes impensável por qualquer economista em plena posse das faculdades mentais. O montante da dívida externa total é menor, de US$ 320 bilhões, mas apenas cerca de 80 bilhões correspondem à dívida pública, cabendo o restante a grandes empresas e bancos privados de comprovada capacidade de pagamento. À luz desses números, não há razões para se temer o retorno do problema da dívida externa no futuro previsível. Contudo, ao mesmo tempo em que o governo busca estimular a entrada de poupança externa no país sob a forma de investimento direto, cumpre também manter o deficit de conta corrente dentro de limites aceitáveis. Acho mesmo que precisamos nos manter bastante atentos porque, em valores anualizados, esse tal deficit já equivale a 3,6 % do Produto Interno Bruto (PIB).
Na avaliação do senhor, como seria uma negociação daquele tipo que coordenou nos dias atuais, com as condições econômicas globais e com o perfil renovado de cada país?
Basta ver o que está ocorrendo atualmente na União Europeia em termos de empobrecimento do povo e desemprego generalizado para entender como é cruel o tratamento dado aos países que caem na armadilha da dívida externa, mesmo para aqueles que pertencem a uma poderosa união monetária. E não esqueçamos que a Argentina continua às voltas com credores renitentes que ainda podem causar grandes dores de cabeça se tiverem suas posições endossadas pela Corte Suprema dos Estados Unidos.
É mais fácil negociar com governos que empresas? A máxima de que dívida impagável é problema do credor e não do devedor vale em todos os casos?
Atrás de cada grande banco ou empresa internacional, há um governo, por isso um país devedor estará sempre confrontado com uma frente poderosíssima. A recente crise financeira trouxe à baila a tese do “too big to fail” (“grande demais para quebrar”, em inglês), isto é, a ideia de que haveria instituições ou companhias tão grandes que não se deveria permitir que elas quebrassem devido aos problemas sistêmicos que isso provocaria. O assunto é quente e está longe de ser resolvido, mas pergunte aos gregos se eles acreditam que a “dívida impagável” é problema apenas dos credores.
Fonte: Correio Braziliense