Minirreforma eleitoral e moralidade pública

    PETER PANUTTO

    Como resposta às manifestações populares de junho e como alternativa ao plebiscito almejado pela presidente da República, a Presidência da Câmara dos Deputados criou um grupo de trabalho para elaborar uma reforma política, o qual apresentou o Projeto de Lei nº 5.735/13, que tramita em regime de urgência na casa, para ser aprovado em tempo de ter eficácia nas eleições de 2014, diante do princípio da anualidade eleitoral, consoante art. 16 da Constituição Federal.

    O projeto de lei não trata de reforma política, mas sim de reforma eleitoral, propondo alterações no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65), na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97).

    Apesar de alguns avanços, como a definição de prazo para substituição de candidatos e a regulamentação dos atos dos candidatos prévios à campanha, o projeto de lei apresenta retrocessos que ferem o princípio constitucional da moralidade pública. Entre os tópicos do projeto de lei que entendemos prejudiciais à moralidade pública, destacamos os que seguem.

    O Código Eleitoral dispõe, em seu art. 175, § 3º, que “serão nulos, para todos os efeitos, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados”. Referido dispositivo objetiva subtrair dos votos válidos aqueles dados a candidatos que concorreram sub judice (com a candidatura impugnada) e tiveram definitivamente a candidatura indeferida após as eleições, conforme
    § 4º do mesmo artigo.

    Dessa forma, a lei resguarda o direito de o candidato concorrer quando teve a candidatura impugnada. Em caso de deferimento da candidatura após as eleições, seus votos serão computados normalmente, dentro dos votos válidos. Contudo, caso o indeferimento definitivo da candidatura se dê após as eleições, os votos são declarados nulos e subtraídos dos válidos, não beneficiando nem o candidato que concorreu sub judice nem o partido dele ou coligação.

    Entretanto, o projeto de lei em estudo prevê a seguinte redação para o mencionado § 3º: “Serão nulos, nas eleições majoritárias, para todos os efeitos, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados”, bem como prevê a revogação do § 4º de mesmo artigo.

    Nota-se que a redação proposta mantém a nulidade dos votos apenas para os candidatos às eleições majoritárias, permitindo-se o cômputo ao partido ou à coligação dos votos dados aos candidatos às eleições proporcionais que concorreram sub judice e tiveram a candidatura indeferida definitivamente após as eleições, consoante proposta de inclusão do § 1º no art. 16-A na Lei das Eleições, com a seguinte redação: “Os votos atribuídos a candidatos que concorram em eleições proporcionais com o pedido de registro sub judice, deferido ou não, no dia da eleição, serão computados para o respectivo partido ou coligação, independentemente de decisão judicial posterior à data da eleição pelo indeferimento do registro”.

    Essa proposta de alteração contraria a moralidade pública, pois permite ao partido ou coligação beneficiar-se dos votos dados a candidatos que concorreram sub judice e tiveram a candidatura definitivamente indeferida após as eleições. Assim, o partido ou coligação não precisaria se preocupar em lançar candidatos respaldados pela moralidade, pois, mesmo que tivessem a candidatura indeferida, o partido ou coligação seria beneficiado com os votos desse candidato. Dessa forma, mesmo candidatos que tivessem a candidatura indeferida pelas novas hipóteses de inelegibilidade criadas pela Lei da Ficha Limpa poderiam beneficiar o partido ou coligação no cálculo do quociente partidário para conquista de cadeiras no Poder Legislativo.

    Especificamente às eleições majoritárias, o projeto de lei prevê nova redação para o art. 224 do Código Eleitoral, de modo a determinar a realização de novas eleições quando o candidato vencedor, que concorresse sub judice, tivesse seus votos declarados nulos, independentemente da quantidade de votos que o vencedor tivesse recebido. Essa mudança seria prejudicial à moralidade pública, pois o partido ou coligação que teve seu candidato eleito, mas com os votos declarados nulos após as eleições, poderia lançar novo candidato nas novas eleições, não sofrendo nenhum prejuízo por ter lançado candidato inelegível nas eleições anteriores, não sofrendo nenhum impacto pela rigidez na Lei da Ficha Limpa, pois os partidos poderiam concorrer novamente e normalmente nas novas eleições.

    A atual redação do artigo 224 do Código Eleitoral prevê o respeito à legitimidade do processo democrático em caso de nulidade dos votos dados a candidato de eleição majoritária. Caso o candidato eleito, concorrendo sub judice, tenha a candidatura indeferida após as eleições e tenha obtido mais da metade dos votos, a Justiça Eleitoral convocará novas eleições. Caso a nulidade seja de menos da metade dos votos válidos, entende-se que o segundo colocado tem legitimidade para exercer o mandato de chefe do Poder Executivo.

    Além das propostas acima destacadas, o projeto de lei também prevê a autorização de doação a partidos políticos por autoridades públicas, o que poderia regulamentar a troca de favores na indicação a cargos públicos pelos partidos políticos. Prevê também a eliminação de obrigação de entrega de propostas de campanha pelos candidatos às eleições majoritárias quando do pedido de registro de candidatura, o que seria um desrespeito à transparência do processo democrático. Além disso, o projeto de lei descriminaliza a boca de urna, o uso de alto-falantes e a realização de carreta no dia das eleições, apenando tais atitudes apenas com multa, ou seja, torna menos rígida a lei quanto aos atos vedados no dia das eleições.

    Como se não bastasse, o projeto de lei em debate pretende deixar expressa a desnecessidade de aprovação das contas para fins de obtenção da quitação eleitoral.

    A prestação de contas de campanha é um dos pontos frágeis do processo eleitoral brasileiro, ensejando inúmeras denúncias de caixa dois e criando campanhas desiguais, em total arrepio à vedação constitucional do abuso de poder econômico nas eleições, conforme art. 14, § 9º, da Carta Magna. Portanto, o ideal seria que o art. 11, § 7º, da Lei das Eleições estabelecesse que a quitação eleitoral abrangesse a aprovação das contas de campanha, bem como estabelecesse o mesmo artigo, em outro parágrafo, que a desaprovação das contas impediria a obtenção da quitação eleitoral durante o curso do mandato ao qual o candidato concorreu, aumentando, desta forma, a eficácia do julgamento do processo de prestação de contas de campanha. Assim, os candidatos teriam maior zelo na arrecadação e gastos de campanha para lograrem aprovação das contas, visando a obtenção da quitação eleitoral para as eleições seguintes.

    Esse projeto de lei, independentemente de sua aprovação, demonstra que os mandatários públicos estão ainda muito arraigados à defesa de interesses próprios, atuando de forma alheia aos interesses coletivos, como ficou cabalmente demonstrado pela não cassação do mandato do deputado Natan Donadon, condenado criminalmente pelo Supremo Tribunal Federal por desvios de verbas públicas e formação de quadrilha, cumprindo pena de prisão em regime fechado.

    É patente, portanto, a necessidade de os mandatários públicos exercerem suas funções sem se esquecer de seguir estritamente o princípio constitucional da moralidade pública, de modo a atender o interesse coletivo, demonstrado de forma intensa pela população nas manifestações de junho, bem como de um repensar na elaboração e implantação das políticas públicas, para o efetivo atendimento dos anseios populares.

    PETER PANUTTO – Advogado, é diretor da Faculdade de Direito da PUC-Campinas e autor de Inelegibilidades: um estudo dos direitos políticos diante da Lei da Ficha Limpa

     

    Fonte: Correio Braziliense

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