Edição 93 - 30/10/2019

O EXPERIMENTO CHILENO E QUANDO AS COBAIAS SE REVOLTAM

O pequeno Chile se tornou uma referência mundial tanto em política quanto em economia.

Na política, foi protagonista do golpe militar mais sangrento e hediondo das Américas. Nele o ódio das elites ao governo de Salvador Allende se aliou às ambições políticas de Pinochet e seus amigos da caserna. O golpe, que contou com o entusiasmado apoio de Nixon e do governo militar brasileiro, causou uma fúria homicida que só pode encontrar comparação nos grupos de extermínio da Alemanha nazista. Este trauma ainda repercute na sociedade chilena.

Na economia, a celebridade do país foi a de se transformar, após o golpe, em um laboratório macroeconômico para as teorias liberais de Milton Friedman e de seus “Chicago boys”, categoria à qual pertence o nosso atual Ministro da Economia. Nesse experimento, tão caro até hoje aos “liberais”, uma ditadura reduziu a pó a rede de proteção social do Estado chileno e assim maximizou a sua capacidade produtiva sem qualquer preocupação social. A partir daí, reza a lenda liberal, a renda per capita cresceu e todos os indicadores econômicos catapultaram a economia chilena para o século XXI. Na sua visão, um exemplo a ser seguido.

Ora, por esta teoria, deveríamos estar presenciando um carnaval de alegria e regozijo da população chilena, mas não é bem isto que está acontecendo. Por quê?

Porque o incremento da renda per capita conta apenas uma parte da história, a desigualdade social e a concentração de renda crescentes, que chegaram a níveis “brasileiros”, contando a parte feia.

O fim da previdência estatal foi apenas o começo do pesadelo. É verdade que na ocasião o trabalhador chileno poderia optar por permanecer no sistema antigo, mas na prática isto equivalia a perder o emprego e jamais obter outro, já que a contribuição patronal para quem optasse pelo novo modelo deixou de existir, era uma espécie de carteira de trabalho “verde e amarela”.

Hoje o trabalhador chileno teria que pagar caro por saúde, por educação e até mesmo por remédios. O “teria” é uma força de expressão, porque simplesmente a imensa maioria dos trabalhadores já não pode mais pagar. O desmantelamento da rede de proteção social tornou sua vida um inferno.

O choque de realidade, inclusive para a classe média, chegou nos anos recentes, quando o sistema de capitalização está começando a pagar as aposentadorias e pensões daqueles que “optaram” por ele. Destes, apenas 56% conseguiram se aposentar (os outros 44% simplesmente abandonaram o dito sistema previdenciário pelo meio do caminho). Os que permaneceram descobriram que cruzaram a linha de chegada apenas para receber valores muito abaixo do nível de sobrevivência.

O governo de Sebastián Piñera, um milionário, campeão do livre mercado, mostrou a sensibilidade social característica deste tipo de gente: nenhuma. O aumento do metrô de Santiago, vital para os trabalhadores que moram cada vez mais longe dos seus empregos, foi apenas a faísca que detonou a revolta dos desesperados da sociedade chilena. E isto numa sociedade que no ano passado cresceu 4%, e cuja previsão para este ano se mantém nos 2,5%. Nem a renda per capita e nem o crescimento econômico são paliativos para a condição angustiante dos trabalhadores.

O nosso ministro da Economia, não à toa, é um fã ardoroso daquilo que ficou conhecido como o “modelo chileno” de economia, sempre reverenciando aquele país como o seu objetivo para a economia brasileira, ou seja, quer fazer aqui exatamente o que foi feito lá. Conta para isto com o entusiasmo de nossas elites, espelhado cotidianamente na nossa mídia. Para eles, assim como para o atual presidente de nosso país, apenas uma economia que destrua os direitos dos trabalhadores liberará os recursos e investimentos necessários para a retomada do crescimento econômico.

O estranho deste modelo liberal é que nenhuma grande economia mundial o adota (elas sabem perfeitamente como acaba), e mesmo a sua implantação a ferro e fogo no Chile, um país de apenas 18 milhões de habitantes, que vive basicamente da venda de cobre para a China, só ocorreu sob os auspícios de um regime brutal que aniquilou fisicamente qualquer opositor e assim desmantelou qualquer resistência dos trabalhadores frente às condições draconianas impostas por empresas e governo.

Hoje, o Brasil e os seus trabalhadores têm a oportunidade única de conhecer e aprender como de fato acabam experiências liberais como a do Chile.

A grande diferença é que para nós ainda há tempo para impedir o pior. As próximas reformas que visam desmantelar o Estado e o que restou do nosso sistema previdenciário, em benefício do mercado, já estão a caminho.

No momento em que comemoramos o Dia do Servidor Público – dia 28 de outubro, segunda-feira passada -, é fundamental acordarmos para a nossa realidade.

Só possuímos uma escolha: ou nos organizamos e lutamos já, ou é melhor irmos nos acostumando ao papel de cobaias chilenas do Paulo Guedes.

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