Edição 0 - 27/11/2002

Tomara que tudo dê certo

C‚sar Benjamin

Creio que ningu‚m est  habilitado a fazer previsäes sobre como ser  o Brasil na nova fase que se inicia. As inc¢gnitas sÆo grandes demais. Precisaremos de tempo para poder come‡ar a decifrar aquilo que denominei, em artigo recente, o “enigma Lula”.
NÆo pode haver d£vida, no entanto, de que temos o dever de ajudar o novo governo a dar certo. Lula ‚ o primeiro filho do povo pobre a ascender … Presidˆncia.  verdade
que conseguiu este not vel ˆxito equilibrando-se na corda bamba, prometendo omelete para todos sem quebrar ovo nenhum. Mas nunca rompeu com a base social ligada … sua hist¢ria de vida e sua trajet¢ria pol¡tica. Suas primeiras declara‡äes, enfatizando o problema da fome – face mais dram tica da nossa questÆo social -, renovam esperan‡as.
Um eventual fracasso do novo governo ser  um fracasso de todos n¢s, um fracasso do Brasil. Menos do que analistas neutros, precisamos, mais do que nunca, ser militantes claramente posicionados ao lado da esperan‡a que nosso povo manifestou.
Nenhum negativismo gratuito deve prosperar: o futuro est  em aberto para ser constru¡do. Tampouco deve prosperar a bajula‡Æo: os desafios sÆo enormes, seja pela complexidade, seja pelo ineditismo da situa‡Æo criada.
Passada a ressaca das comemora‡äes, fa‡o aos dirigentes do PT um apelo para que nÆo cometam um erro fatal. Refiro-me …s not¡cias de que eles concordariam, ou at‚ mesmo patrocinariam, uma altera‡Æo constitucional que abriria caminho para uma regulamenta‡Æo parcial e casu¡stica, ainda neste ano, do artigo 192 da Constitui‡Æo. O objetivo expl¡cito dessa manobra seria permitir a edi‡Æo, antes da posse do novo governo, de uma lei complementar que concederia autonomia legal ao Banco Central. A crer no que sai na imprensa, dirigentes do peso de Jos‚ Dirceu, Guido Mantega e Ant“nio Palocci vˆm se posicionando a favor da medida, considerada por este £ltimo como “uma sinaliza‡Æo importante para o mercado [financeiro] da seriedade com que o PT pretende conduzir a economia”.
Entre todos os erros que podem vir a ser cometidos nessa fase de transi‡Æo, este
‚, de longe, o mais importante, por seu alcance e por seu car ter irrevers¡vel. Precisa
ser evitado, nem que seja por simples prudˆncia, para ampliar o debate e amadurecer melhor a questÆo. Conceder autonomia legal ao Banco Central de forma a‡odada, em vez de seriedade, ser  uma demonstra‡Æo de incompetˆncia e fraqueza.
A linha de argumenta‡Æo dos que defendem essa medida ‚ a seguinte: o Banco Central deve trabalhar com metas (de infla‡Æo e de cƒmbio) definidas com participa‡Æo do governo, mas suas decisäes operacionais devem ser preservadas de qualquer interferˆncia pol¡tica indevida; por isso, seus dirigentes passariam a receber
um mandato de quatro anos, sancionado pelo Senado, tornando-se independentes do pr¢prio presidente da Rep£blica. O argumento, … primeira vista, ‚ apenas simpl¢rio.
Pois poderia ser usado para defender autonomia legal para todos os ¢rgÆos governamentais. Afinal, qual deles nÆo deve ter metas? Qual nÆo deve ser preservado de interferˆncias indevidas? A educa‡Æo, a sa£de, a previdˆncia, o Incra, o BNDES, as
empresas de energia e as demais – em qual desses setores a politicagem deve ser tolerada? Em nenhum, ‚ claro. Logo, a mesma l¢gica deveria conduzir … proposta de que, depois de definidas as metas setoriais, todos os minist‚rios, ¢rgÆos e empresas p£blicas fossem declarados entes aut“nomos, por for‡a de lei, restando ao presidente recolher-se a uma casa de praia, para nÆo mais interferir na racionalidade (supostamente) t‚cnica que a partir de entÆo presidiria as decisäes dos gestores…
Isso nÆo ‚ s‚rio. Por tr s do car ter aparentemente simpl¢rio da proposta, nela s¢
h  esperteza.  o Banco Central quem estabelece as regras de opera‡Æo do sistema financeiro, gerencia as d¡vidas interna e externa, cuida das reservas internacionais, fixa a taxa de juros, conduz a pol¡tica de cƒmbio, acompanha a remessa de recursos para
o exterior e emite (ou deixa de emitir) dinheiro, entre outras atribui‡äes. Tudo isso define quais serÆo as taxas de crescimento esperado da economia, o n¡vel do emprego, o montante dos gastos p£blicos e o volume de cr‚dito dispon¡vel para o setor produtivo real. Ou seja, o Banco Central executa o “n£cleo duro” da pol¡tica econ“mica. Talvez por isso, todos os presidentes brasileiros, incluindo Fernando Henrique, recusaram-se a aceitar esse tipo de autonomia que agora se pretende estabelecer.
O PT tem todas as condi‡äes – legais, pol¡ticas e morais – para nÆo ceder. Um Congresso em fim de mandato nÆo pode alterar, a toque de caixa, a Constitui‡Æo do pa¡s. E nÆo custa lembrar que foi a bancada federal do PT quem tentou regulamentar o artigo 192, apresentando na ‚poca adequada um bom projeto de lei que, entre outras coisas, pretendia submeter as decisäes do Banco Central (considerado independente demais!) a uma avalia‡Æo peri¢dica por parte de instƒncias representativas da sociedade. Exatamente o oposto do que se defende agora. O projeto est  parado na Cƒmara h  onze anos, barrado pela maioria conservadora.
Por que aceitar que se fa‡a em pouco mais de um mˆs, em sentido oposto … posi‡Æo hist¢rica do PT, uma regulamenta‡Æo que os conservadores vˆm se recusando a fazer h  catorze anos, desde a promulga‡Æo da Constitui‡Æo de 1988?
O que est  em jogo nÆo ‚ pouco. Em primeiro lugar, como disse acima, est  a capacidade controlar a opera‡Æo do sistema financeiro. Bancos sÆo empresas especiais, que por defini‡Æo nÆo podem honrar seus compromissos em nenhum momento espec¡fico. Pois, em uma ponta, recebem dep¢sitos que, em tese, seus clientes podem sacar a qualquer momento; na outra ponta, usam esses dep¢sitos para conceder cr‚ditos, que s¢ podem ser cobrados depois de cumpridos os prazos contratuais. Assim, os bancos estÆo sempre em desequil¡brio. Interessa … sociedade que eles corram esse risco, pois as opera‡äes de cr‚dito sÆo essenciais ao desenvolvimento econ“mico. Por outro lado, tamb‚m interessa … sociedade que eles sejam empreendimentos seguros, pois uma crise banc ria sempre ‚ muito grave. Para compensar o risco inerente … sua atividade e garantir solidez ao sistema, os bancos – ao contr rio das empresas comuns – podem recorrer a um emprestador de £ltima instƒncia, que lhes d  cobertura.  o Banco Central, a quem, como vimos, a sociedade concede a especial¡ssima prerrogativa de fabricar dinheiro.
Ora, se o Banco Central (um ¢rgÆo p£blico) tem a obriga‡Æo de garantir a solvˆncia do sistema banc rio privado, usando para isso a faculdade de emitir a moeda nacional, ‚ claro que ele precisa deter poderosos mecanismos de controle de todo o sistema. Por isso, os bancos estÆo sujeitos a regras muito mais estritas que aquelas vigentes para os demais setores da economia. No Brasil e em outros pa¡ses, os
bancos centrais dispäem de instrumentos bastante fortes de regula‡Æo do sistema financeiro, que aqui vˆm sendo subutilizados por falta de vontade pol¡tica.  por isso, por exemplo, que os bancos especulam abertamente contra a moeda nacional, com toda impunidade, e ganham bilhäes. Aceitar a autonomia legal do Banco Central, nas condi‡äes atuais, ‚ radicalizar essa situa‡Æo.  legalizar a cria‡Æo, para os bancos, de
uma esp‚cie de “territ¢rio liberado”, que o governo brasileiro desistiu de submeter …s
suas pr¢prias decisäes. Em situa‡Æo de crise – situa‡Æo mais do que prov vel -, o presidente da Rep£blica estar  legalmente privado de poderes para intervir, alterando a pol¡tica monet ria e cambial, se assim achar necess rio.
Sem o controle do Banco Central tamb‚m nÆo se consegue mudar o modelo econ“mico. E, como sempre disse o PT, ‚ exatamente isso que precisa ser feito, sem demora. O modelo atual j  faliu. Por indu‡Æo externa, mas com forte apoio interno das
nossas elites, realizou-se na economia brasileira uma abertura irrespons vel, pois – ao
contr rio, por exemplo, das economias asi ticas – nÆo cont vamos com grandes empresas nacionais (capazes de conduzir uma inser‡Æo ativa no sistema internacional)
nem t¡nhamos condi‡äes, nesse novo contexto, de gerar super vits na conta-corrente do balan‡o de pagamentos. Ficamos expostos a crises recorrentes, neutralizadas no curto prazo pela atra‡Æo de vultosos recursos externos, em um contexto de liquidez internacional abundante. A manuten‡Æo de elevadas taxas de juros, a venda do patrim“nio p£blico e a indu‡Æo … desnacionaliza‡Æo do sistema produtivo e dos recursos naturais do pa¡s foram os principais expedientes usados. Esse modelo de gestÆo se esgotou, por motivos internos e externos, e o Brasil submergiu em uma crise cambial que j  se instalou. Ela ainda nÆo nos desarticulou completamente por causa
dos sucessivos aportes de recursos do FMI. Esses aportes vˆm acompanhados de exigˆncias que fragilizam ainda mais a nossa economia e preparam novas rodadas de concessäes, num processo semelhante ao que levou a Argentina ao colapso.
A decisÆo fundamental do governo Lula, na  rea econ“mica, ser  entre prosseguir nesse caminho ou ter coragem para mudar. Nos dois casos, h  dificuldades … vista. Lula nÆo deve hesitar em dizer isso ao povo. Mas deve deixar claro uma diferen‡a fundamental: os sacrif¡cios exigidos pelo caminho atual sÆo in£teis, pois neste
caso a crise reaparecer  logo adiante, agravada; a alternativa progressista, ao contr rio, cont‚m em si as condi‡äes para superar dinamicamente suas dificuldades
iniciais.
A luta pelo controle do Banco Central ‚ a mais importante arena atual desse debate. Infelizmente, por‚m, nÆo ‚ a £nica. Associado … defesa dessa medida estapaf£rdia, e de forma coerente com ela, porta-vozes do PT vˆm se propondo a manter – e at‚ aumentar – o chamado super vit prim rio. Isso ‚ tecnicamente indefens vel. Super vit prim rio ‚ um conceito esp£rio, desprovido de consistˆncia.  uma constru‡Æo ideol¢gica do Consenso de Washington.
Do ponto de vista macroecon“mico, ‚ indiferente se o Estado emite R$ 1,00 para remunerar professores ou para remunerar milion rios que vivem de rendas. Mas, pela contabilidade do FMI e do governo brasileiro, que o PT est  se propondo a perpetuar,
a remunera‡Æo de professores (ou a compra de merenda escolar, o investimento em sistemas de  gua e esgoto, a constru‡Æo de hidrel‚tricas, etc) amea‡a as metas dessa anomalia chamada super vit prim rio; como tal, est  enquadrada nos estreit¡ssimos limites da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. J  a remunera‡Æo de rentistas est  liberada, pois simplesmente nÆo entra nessa contabilidade oportunista, inventada sob medida. Desafio qualquer economista a me apresentar uma alega‡Æo t‚cnica para justificar essa diferen‡a de tratamento.
Dependendo das circunstƒncias, Estados nacionais podem optar, legitimamente, por ter d‚ficits, superv vits ou equil¡brio fiscal. Ter “super vit prim rio”, no entanto, nÆo tem sentido nenhum. Ou melhor, serve para justificar o injustific vel: em uma economia
em recessÆo, o Estado continua retirando grandes quantidades de recursos da sociedade para continuar emitindo moeda financeira, ou moeda que rende juros (hoje de 21% ao ano), que s¢ os bancos administram e s¢ os ricos possuem, na maior
parte entesourada. Este ‚ o mais importante mecanismo de concentra‡Æo de renda em opera‡Æo no Brasil nos £ltimos anos. E cria a pior forma de d‚ficit p£blico, aquele que aprofunda a recessÆo. Insistir nesse caminho, em um contexto de 20% de desemprego, isso sim ‚ uma enorme irresponsabilidade.
O novo governo precisa libertar-se dessas camisas-de-for‡a, e nÆo criar novas.
Em vez de se tornar aut“nomo, o Banco Central precisar  trabalhar de forma intimamente articulada com o Tesouro Nacional, ambos perseguindo metas combinadas nÆo s¢ para a infla‡Æo e o cƒmbio, mas tamb‚m para o emprego e o volume de cr‚dito ofertado … economia real. Essa a‡Æo articulada deve assegurar que a economia seja irrigada com os fluxos monet rios e financeiros necess rios para conduzi-la, com relativa estabilidade de pre‡os, a uma posi‡Æo cada vez mais pr¢xima do pleno emprego, ou seja, ao n¡vel em que a produ‡Æo efetivamente realizada coincida com o uso do potencial produtivo existente. S¢ a¡ deve o Estado operar em equil¡brio fiscal.
Estamos longe disso. H  muito a fazer. Em vez de ficar no atoleiro, gerenciando um modelo que j  faliu, uma agenda progressista – verdadeiramente s‚ria e respons vel – deveria propor um conjunto de medidas que convergissem rapidamente
para trˆs grandes metas macroecon“micas: obter equil¡brio na conta-corrente do balan‡o de pagamentos (sem ilusäes de que conseguiremos isso mediante um choque de exporta‡äes), remontar um sistema interno de financiamento do desenvolvimento (capaz de oferecer um choque de cr‚dito, gra‡as a uma a‡Æo coordenada do Banco do Brasil, da Caixa, do BNDES, do Banco do Nordeste, dos fundos de pensÆo e do sistema banc rio privado, devidamente enquadrado pela a‡Æo do Banco Central) e come‡ar desde logo a alterar dramaticamente as condi‡äes do mercado de trabalho (com 20% de desemprego aberto e 50% de informalidade nenhuma justi‡a social ‚
poss¡vel).
Em paralelo, a nova pol¡tica econ“mica deveria preparar um novo ciclo de desenvolvimento, orientado para a cria‡Æo do mercado interno de massas, que exigir  pelo menos quatro precondi‡äes, de matura‡Æo mais lenta: um significativo barateamento nos custos da alimenta‡Æo (para liberar poder de compra do povo para outros produtos), um enorme programa de habita‡Æo popular (para estimular nÆo s¢ a constru‡Æo civil, mas tamb‚m as variad¡ssimas ind£strias de equipamentos dom‚sticos), uma amplia‡Æo e retomada dos servi‡os p£blicos essenciais (altamente
geradores de emprego) e a generaliza‡Æo do acesso a energia segura e barata. Todas
essas frentes estrat‚gicas – que no mundo inteiro formaram a base dos processos de
desenvolvimento baseados no consumo de massas – apresentam baix¡ssimo coeficiente de importa‡äes.
Se a opera‡Æo montada para promover a autonomia legal do Banco Central se completar, estar  eliminada a possibilidade de mudar o modelo nessa dire‡Æo, ou em outra qualquer, igualmente progressista. Neste caso, o governo Lula nÆo se constituir  plenamente. Todo o esfor‡o para viabiliz -lo pol¡tica e eleitoralmente culminar  em
uma esp‚cie de Batalha de Itarar‚ – a grande batalha da hist¢ria do Brasil, que nÆo
chegou a ocorrer. Esperemos que Lula nÆo aceite ser o presidente que foi, sem ter sido.
Tomara que tudo dˆ certo.

C‚sar Benjamin ‚ autor de A op‡Æo brasileira (Contraponto Editora, 1998, nona edi‡Æo) e integra a coordena‡Æo nacional do Movimento Consulta Popular.

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