Edição 116 - 10/11/2022

A RESSACA DE UMA AND VIRTUAL

(Por Denise Aboim Sande e Oliveira, Delegada do Sinal-RJ à XXIX AND do Sinal,
Servidora da Ativa lotada no DEMAB)

Acordei hoje, e me dei conta.

Eu não conheço vocês, com quem debati estes assuntos, nesta última semana mais intensamente.

É a diferença entre ver um filme sozinho em casa, e sentir a emoção da sala de cinema com o twist inesperado da trama.

É a diferença entre assistir a um jogo na TV, e ir para o estádio fazer “olas” com a torcida.

É ver a família somente pelo Zoom.

É não saber das histórias do filho do colega, porque você não encontra mais no cafezinho.

É tornar 1/3 de nossas vidas irrelevantes, fungíveis, sem objetivo, trocáveis por dinheiro, qualquer dinheiro.

É a diferença entre um povo que vai fazer mobilizações na rua, lutar por seus direitos, e um exilado no exterior com seu pequeno grupinho de conhecidos, que não tem ideia do que está passando com as pessoas que conheceu e conviveu em outra vida.

Falam em 600 mil, 700 mil, um milhão de reais economizados com uma AND virtual… Tenham noção de escala, gente! Fomos mais de mil servidores em greve por mais de 3 meses… se tivéssemos um fundo de greve de 3 milhões, 6 anos sem ANDs presenciais, economizando centavos, o que daria? Mil reais por mês por servidor em greve, pra uma única greve? Isso seria suficiente? É por isso que vocês querem trocar a experiência formativa da categoria pela qual dizem querer lutar? Dinheiro? Não seria suficiente pra sustentar a greve.

Sabe o que seria? Ter, sentir, toda a categoria junta! Os delegados se encontram, conhecem-se uns aos outros. A experiência física é única. Os delegados depois voltam aos seus lugares de origem, mas a memória daqueles dias em que estiveram juntos com outros, debatendo os objetivos comuns, isso é o que vai sustentar seu entusiasmo pelos próximos meses e anos. É esse entusiasmo que pode contagiar os colegas e construir um movimento. Experiência formativa. Sem isso, não passam de palavras ao vento, que num momento interessam e no outro são esquecidas.

Ainda hoje lembro com carinho dos dias do curso de formação, 20 dias presenciais em Brasília com meus colegas concursados. Éramos um time, uma equipe, uma turma com identidade. Essa identidade foi se dissolvendo com o tempo, conforme nossos colegas foram conhecendo outros, formando novas equipes, construindo sua identidade como servidores do Banco. Mas ainda lembro. Fulano? Sim, foi meu colega, sentamos um dia pra comer no barzinho… Ou paramos pra jogar buraco numa noite. Experiência formativa. Colegas, amigos. Mais que meros conhecidos dos quais mal lembro o nome.

Perguntam porque não temos mais aposentados conosco. Os ativos ainda se encontram, ainda se conhecem, dois, três anos de trabalho virtual não foram suficientes pra esquecer. Mas a maioria dos aposentados nunca trabalhou conosco. Eles não conhecem os ativos. Lembro das AGNs presenciais, das greves em que participei. Não sabia quem era aposentado ou ativo. Havia muitos? Não. Mas os que estavam lá, se sentiam unidos com o todo. Entendiam pelo que estávamos lutando. E podiam transmitir este entusiasmo para os demais que não podiam participar. Nunca fomos uma categoria forte. Temo que deixaremos até mesmo de ser categoria, se formos neste caminho que se desenha.

Essa foi uma emoção resultante das AGNs que tivemos durante a greve, sim! Mas vejam os limites desta experiência. Foram meses de assembleias praticamente diárias, em que eu me perdia muitas vezes no que estava sendo discutido, e não tinha o colega do lado pra trocar ideias. O chat ajudava, mas não dava essa experiência. E apesar de tudo foi insuficiente. Eu não conheço vocês. Lembro no máximo de meia dúzia de nomes. Por que lutaria por vocês? O sindicato tem que ir além de uma conjunção de interesses conjunturais, ou não é sindicato. É você conhecer o colega de luta, entender quais as suas paixões, o que o motiva… Não há tempo para isso numa assembleia virtual, com no máximo três minutos para somente um punhado de participantes que conseguem lugar de fala.

É impossível chegar a conhecer alguém pelo meio virtual? Não. Mas é a exceção à regra. Pessoas como a Cleide, que conheci nessa assembléia, mas ela não me conhece. Não fazemos rede, não construímos comunidade.

Não construímos consensos, só concordâncias momentâneas.

Sim, sair de seu lugar, gastar o tempo para conhecer os outros, e debater estes assuntos tão importantes.

O debate foi vazio de paixão, na maior parte das vezes. Fiquei sem entender o que está atrás das posições do Max, das falas do Filipe.

Se vocês acham que o trabalho que fazem pode ser resumido a uma série de tarefas que você faz no computador, sem jamais tomar um chope e conversar com o colega que está na divisão vizinha e ouvir suas preocupações… é um trabalho sem vida, que não sustenta sua identidade como servidor público desta nação.

Uma reunião virtual é um diálogo monopolizado por poucas vozes, muitas vezes vazio de sentido humano. Por que lutamos? É somente por mais dinheiro no bolso? Ou por uma responsabilidade diante do país e dos desafios comuns que teremos pela frente?

Você pode trabalhar pelo computador.

Mas sem jamais encontrar com seus colegas de equipe, para debater com mais profundidade aquilo que te preocupa no que faz, e mesmo pra falar de coisas alheias ao trabalho, você não constrói laços. Trocar de equipe? Claro, não tenho nada a perder, aquelas pessoas na tela não são pessoas de verdade para mim… Quantas vezes isso já aconteceu? Há pessoas que conseguem construir laços apesar da distância. Essas experiências mostram, pela sua excepcionalidade, o quanto todos nós estamos perdendo.

Não há família sem encontros de festa.

A AND é a nossa festa, do sindicato, em que os delegados podem conhecer as pessoas por trás dos discursos, falas e posições. Sem esse encontro, sem esse conhecimento, não haverá mais sindicato, independente do nome que quiserem dar.

Podemos ter o tempo prolongado de preparação de debate anterior, sobre posições etc. Isso foi um ganho, enorme, desta AND. Mas não substitui o encontro pessoal. São coisas diferentes. Sem eu me sentar com as pessoas por trás destas falas, para trocar ideias, o que será do sindicato?

Não é uma posição poética, desligada do mundo moderno. O mundo atual quer nos fazer perder a noção de parte da experiência do humano. Não somos ostras fechados em cascas, interagindo com o exterior somente pelo que consegue passar pelas frestas. Como indivíduos, com estas relações reduzidas com nossos colegas, filtrado pelo que consegue ser comunicado através das redes digitais, não passamos de átomos, que podem ser dispersos com um vento mais forte. Jamais seremos um muro para defender nossos ideais, ou a ponta de uma lança para produzir mudanças. Os laços, frágeis, construídos durante as AGNs virtuais deste ano e dos debates desta AND meramente virtual, se esfumam com o tempo. Não tenho na minha memória mais que breves fotografias, menores que a vida, das pessoas que ouvi defenderem suas posições, em minutos exíguos que exigem o descarte de todas as nuances e sabores.

Não conheço vocês. Deixei um encontro familiar, com primos que vejo tão raramente, pra participar da AND. Mas o encontro, apesar de tudo, me deixou vazia. Não conheço vocês. Em outra AND, porque deixaria de encontrar com pessoas pra encontrar com pálidas miragens? Me pergunto se eu realmente estou em sintonia com um grupo de pessoas que mesmo pensando diferente, tem concretude, são pessoas que aprecio, que valorizo. Ou são pessoas que nem se importam comigo. Pois é o que parece. Ninguém se importa com o outro, não o suficiente para se encontrar com o outro, para conhecê-lo de verdade.

Somos privilegiados, e digo isso no sentido negativo. Temos privilégios e lutamos por eles, ao invés de lutarmos pelo humano. Mas eu não vou lutar por algo em que não acredito. Palavras são vazias se não têm pessoas por trás. Se as ANDs forem totalmente virtuais, se não houver chance de conhecer pelo menos algumas pessoas por trás das palavras, construir laços, redes, comunidade, se a categoria se dissolver em mera conjunção momentânea de interesses, eu vou chorar a perda de 1/3 da minha vida, mas terei que ir adiante, encontrar a vida mais além das miragens e ilusões.

 

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